Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 30 de março de 2008

Surpresa boa

Gosto bastante da atriz Maria de Medeiros. O jeito lânguido, mínimo, mignon, que normalmente não me atrai numa mulher, nela é o que mais se destaca. Tem uma expressão nos olhos que presume alguma carência, certa necessidade de proteção. Uma boca fina e delineada que sugere de tudo um pouco. É surpreendente como esta imagem fragilizada esconde uma atriz forte e convincente.

A primeira vez que a vi foi no filme Henry & June – Delírios eróticos, em 1990, onde, ao lado de Uma Thurman e todo seu esplendor, conseguiu não ser ofuscada pela beleza da outra, muito provavelmente por ter o papel mais instigante, o da escritora Anaïs Nin. O filme não é lá grande coisa, mas saí do cinema impressionado com aquela atriz portuguesa.

Três anos depois disso, a vi no filme Huevos de Oro, de Bigas Luna, ao lado de Javier Bardem e Maribel Verdú. Sem ter o papel principal, roubou algumas cenas desempenhando o papel de uma mulher incerta, fora de seu mundo. Mais uma vez, naquela ocasião, exibiu uma forte capacidade de extravasar sensualidade, sem que tenha sido necessário ter atributos físicos exuberantes.


Um ano depois, me surpreendeu novamente nas telas, interpretando a namorada de Bruce Willis em Pulp Fiction de Quentin Tarantino. Confesso que não morro de amores por este filme, como em geral, pela obra deste diretor. Mas sua atuação foi correta e bastante.

A última vez que a vi foi numa participação em Xangô de Baker Street, mas, antes disso, ela dirigiu e atuou em Capitães de Abril, filme que tratava da Revolução dos Cravos. Foi só com a revolução, aliás, que essa filha de Lisboa voltou a Portugal, ainda criança, após passar a infância toda na Áustria. É uma atriz firme e capaz, que já não me surpreende.

Foi com muita surpresa, entretanto, que descobri seu lado cantora, no CD Little More Blue. É um disco feito exclusivamente com músicas brasileiras. Tem uma canção de Dolores Duran, uma de Ivan Lins, duas de Caetano e dez de Chico Buarque. Embora tenha um repertório irrepreensível, não é este o traço mais admirável do disco. O que mais me chamou a atenção foi o acompanhamento instrumental, a cargo do baixista turco Emek Evci, do percussionista francês Joël Grave e do pianista Jeff Cohen. Os arranjos são absolutamente não convencionais, todos muito inventivos.



Com uma solução propositadamente minimalista, os 3 músicos participam de cada faixa com parcimônia e delicadeza, ora em conjunto, ora individualmente, privilegiando a voz da cantora. Sua voz, aliás, soa estranha num primeiro momento, um tanto metálica. Sua precisão, entretanto, é assombrosa, tanto na articulação das palavras quanto na entoação das notas musicais. Divide uma das faixas com o compositor uruguaio Jorge Drexler, numa interpretação graciosa.



Surpreso com o disco, ando ouvindo-o com insistência e a cada audição descubro algo novo. E cada descoberta aguça mais minha curiosidade e reforça mais minha surpresa. Tal qual acontece quando ouço João Gilberto.

domingo, 23 de março de 2008

Admiração

Eu tenho uma grande admiração por estrangeiros que vivem no Brasil. Não os que vêm pra cá pra ficar um tempo, motivados pelo trabalho ou por alguma oportunidade passageira. Nem os que saíram de seus países devido a dificuldades políticas ou econômicas, fugidos ou esfomeados, em busca de abrigo, de um lugar ao sol. Nada tenho contra estes ou aqueles. Cada um deve ser livre pra decidir e escolher onde é que quer (ou pode) viver.

Minha admiração, entretanto, é por aquele estrangeiro que, sem ter nenhuma necessidade específica, sem uma motivação econômica ou política, escolhe o Brasil para viver sua vida. Viver para sempre. Escolhe nosso país pelo que ele tem de mais verdadeiro.

Nutro esta admiração, certamente, por causa da minha incapacidade de sentir-me estrangeiro. Simplesmente não consigo viver feliz numa terra estranha. Já tive esta experiência, algumas vezes, vivendo fora, períodos bem curtos, poucos meses, no máximo. Mas foram suficientes pra deixar bem claro o quanto me faz falta o Brasil. E não falo da óbvia saudade da família e dos amigos. Isso todo mundo sente. Sentia falta, na verdade, é de tudo. Ouvir nossa música, falar nossa língua, comer nossa comida, ler jornais em português. E é por isso que admiro tanto quem consegue sair de sua terra e vir para o Brasil. Acho que chego até a invejar. E essa admiração é muitas vezes aumentada quando este estrangeiro consegue dominar nossa língua. E esse é o caso de dois americanos que escolheram nossa terra para viver: Matthew Shirts e Michael Kepp.

Matthew, ou Mateus, como é chamado pelos amigos, veio ao Brasil, pela primeira vez, há mais de 30 anos e há quase 25 mudou-se definitivamente pra cá. Ele é hoje redator chefe da revista National Geographic Brasil e escreve semanalmente, às segundas-feiras, uma coluna no Caderno 2 do Estadão. Em seus textos, é bastante comum nos depararmos, não com manifestações de surpresa com os hábitos nativos, mas sim, com certa estupefação que seus hábitos de “gringo” ainda provocam nos brasileiros. São textos sempre leves e bem humorados, o que não significa que não tenham profundidade e crítica.

Outro gringo que adotou o Brasil definitivamente é Michael Kepp, nascido no Missouri e que, cansado de um estilo tacanho, típico do meio-oeste americano, resolveu meter uma mochila nas costas e ganhar a estrada à procura de um lugar em que ele coubesse. Depois de muito andejar, acabou caindo no Brasil e por aqui ficou, já se vão 25 anos. Seus artigos podem ser lidos, uma vez por mês, no caderno Equilíbrio que sai na Folha de São Paulo às quintas-feiras. Um conjunto representativo de seus textos também pode ser lido no livro Sonhando com sotaque – Confissões e desabafos de um gringo brasileiro. Um pouco mais ácido que Mateus, Michael Kepp não doura a pílula quando tem que criticar os hábitos brazucas, sem deixar de reconhecer que, apesar de tudo, foi aqui, depois de andar tanto, que encontrou o lugar no qual poderia ser feliz.

Ambos, declaram freqüentemente o seu amor ao Brasil. Isso não significa que evitem fazer críticas ao país, suas elites e até mesmo a seu povo. Por que amor é assim mesmo. Amor pressupõe a verdade e a verdade não prescinde das críticas. Quem aceita tudo, quem não se importa com nada, está, na verdade, se lixando. E não é esse o caso destes dois brasileiros.

sábado, 15 de março de 2008

Dois povos

Cuba é um país que sempre povoou o imaginário brasileiro. Para o bem e para o mal.

Nos anos 70 provocava um medo lancinante na classe média, ciosa de seus fusquinhas usados, comprados à prestação. Também embalava os sonhos de uma juventude romântica, oriunda desta mesma classe média, faminta de causas, sinceramente convicta de que ansiava pelo bem dos verdadeiros famintos. Olhava-se Cuba, daqui, como o inferno, onde demônios barbudos comiam as criancinhas que encontravam pelo caminho, ou então, como um paraíso, onde a justiça social se forjava sem depender do capital maléfico ou da providência divina.

Provocando a imaginação, seja para um lado ou para o outro, Cuba nunca ocupou uma área de indiferença na mente do povo brasileiro. E é assim até hoje. E é assim, inclusive, pelo fato de os dois povos guardarem uma imensa similaridade. Similaridade na alegria, na miscigenação, na comida e, sobretudo, na música. A música brasileira e a música cubana são, provavelmente, o que de melhor cada um destes povos produz.

O namoro entre as duas músicas sempre existiu. Às vezes de longe, meio dissimulado, com alguma cautela. Outras vezes bem perto, escancarado, como na aproximação entre Chico Buarque e Pablo Milanés, onde uma nova música cubana foi apresentada a uma, infelizmente restrita, audiência brasileira.

Depois, muito tempo depois, outra música cubana foi apresentada ao mundo por Ry Cooder (com uma ajudinha do capital maléfico) através do disco Buena Vista Social Club. Nessa ocasião, os Estados Unidos, além da Europa e da Ásia, conheceram a magnífica performance de Ibrahim Ferrer, Compay Segundo e Ruben Gonzales, entre outros. E nessa leva, o mundo tomou conhecimento de Omara Portuondo.

E agora, mais um namoro se mostra ao mundo. Maria Bethânia e Omara Portuondo acabam de gravar um disco. O resultado é soberbo. Duas cantoras no auge da maturidade, ambas com uma força impressionante, numa sintonia natural e bonita. Um repertório bem pensado e exato, com canções das duas terras, nas quais estas cantoras se entregam. Como não poderia deixar de ser, o acompanhamento destas vozes é sóbrio, mas há, em meio a toda sobriedade, pontos de excelência, como os violões de Swami Jr. e Jaime Alem e o piano do cubano Roberto Fonseca.


É um disco pra se ouvir em paz. Sem medo e sem pensar na revolução. Não nessa hora. Ouvir bebendo um bom rum ou uma cachaça da boa, tanto faz. Celebrando a excelência dessa música, nada mais.

Brasil e Cuba. Dois países unidos pelo que há de melhor em cada um deles. Duas divas, não duas celebridades. Elas estão muito acima disso.

sábado, 8 de março de 2008

Dividindo as chances

Já ouvi dizerem que, depois de todo o mal feito por Bush, até um poste se elegeria presidente dos Estados Unidos, contanto que fosse candidato pelo partido Democrata. Pode até ser. Afinal, além das traquinagens feitas pelo Júnior, é necessário reconhecer a tradição de alternância no poder entre os dois partidos. Some-se a isso o fato de que John McCain, o candidato republicano, tem o carisma de uma parede caiada.

A sociedade americana está, há muito tempo, extremamente dividida. Democratas e republicanos, conservadores e progressistas, Texas e Califórnia. Convive, de maneira surpreendente, o que há de mais retrógrado com o que existe de mais moderno em termos de comportamento e tolerância. É difícil prever até quando essa convivência será pacífica.

Depois de duas eleições absolutamente questionadas, em que Bush venceu com o país dividido, é natural e até mesmo esperado que os democratas levem, desta vez.

Posto isso, quando tudo parecia certo pros democratas, eis que, ironia do destino, surgem os dois candidatos mais carismáticos que este partido já teve nos últimos anos. Esta situação está dividindo as opiniões e acirrando tanto a disputa que pode ser que isso acabe favorecendo o candidato conservador.

Um agravante nesta situação é o fato de disputarem a preferência do eleitorado democrata, uma mulher e um negro. O que poderia parecer um sinal de modernidade e gerar uma expectativa otimista nos mais progressistas, pode ser mais um fator desagregador. Pra piorar, nem Obama e nem Hilary estão alinhados com os movimentos negro e feminista, respectivamente. Obama não é Martin Luther King. Não é Malcolm X e nem Jesse Jackson. Obama pensa e age como branco. Hillary não é Betty Friedan nem é Camille Paglia. Hillary pensa e age como homem.

O maior perigo é que o exagerado preconceito da sociedade americana acabe enfraquecendo a candidatura democrata e que um poste que parece uma parece branca seja eleito presidente dos Estados Unidos. Só uma coisa alivia: nem um poste, nem mesmo uma parede caiada, podem ser piores do que Bush Jr.

A vida da gente

Os regimes autoritários só se sustentam manejando informações. É preciso saber de tudo e de todos, para melhor controlar as coisas. Controlar a vida das pessoas. Foi assim no estado novo de Getúlio, na União Soviética stalinista, no Chile de Pinochet, na ditadura militar brasileira. Foi assim, também, na Alemanha Oriental.

E é sobre essa época, a da República Democrática Alemã que trata o filme A vida dos outros, do diretor Florian Henckel von Donnersmarck. Nele, o personagem central é um funcionário do governo, encarregado de espionar as pessoas consideradas “suspeitas”. Interpretado pelo ótimo ator Ulrich Mühe, este funcionário excepcionalmente burocrático, cumpre sua função à risca, acreditando, sinceramente, estar fazendo o que é correto.

O que, inicialmente, chama a atenção no filme é como podem existir pessoas que se guiam arduamente por regras e normas para viverem suas vidas. E como isso faz com que se sintam confortáveis e seguras. Essas pessoas não arriscam, nunca questionam o que está estabelecido e num determinado momento, adquirem uma cegueira absoluta, que faz com que não consigam perceber nem mesmo as mais óbvias contradições do mundo. São pessoas satisfeitas, acima de tudo, mas nunca felizes, já que a felicidade exige um pouco de risco, experimento, novas descobertas.

Viver não é preciso, já disse o poeta. Pra viver não existe receita de bolo. É um aprendizado contínuo, com todos os erros que ele pressupõe. Ao normatizarmos nossas vidas, estamos fugindo dos erros, como se isso compensasse a falta de prazer verdadeiro, que uma vida normalizada provoca. Sim, pois sob regras e normas, até o prazer é pasteurizado. Fazer o que é pra fazer, o que está convencionado, o que está escrito.

Num determinado momento do filme, porém, o personagem principal começa a questionar-se e, também, o sistema que ele segue, tão cegamente. E, aí, vai dando um tipo de angústia, de perceber-se tão cego e tão iludido. Perceber a falta de amigos, a falta de amor. Perceber a vida tão tacanha e enfadonha, apesar de confortável. Confortável é pouco. É preciso provar dos sabores da vida e, se necessário, é preciso transgredir.

Sentir-se, de repente, frente ao mundo real, com tudo de bom e de ruim que ele nos oferece pode ser chocante, num primeiro momento, mas é extremamente prazeroso descobri-lo e descobrir-se.