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domingo, 17 de julho de 2016

Mais do que técnica, talento

Aprendi com um amigo jornalista que o fato dele escrever bem devia-se muito menos por talento e muito mais por treino. Na verdade, segundo ele, o jornalista aprende a escrever, na escola, para que consiga produzir textos claros, simples e objetivos. Desta forma, é uma habilidade como a de qualquer profissional de outra área, seja um neurocirurgião que consegue abrir um crânio e fazer incisões com precisão milimétrica, um pianista que executa com perícia uma obra-prima de qualquer compositor erudito ou um engenheiro que calcula, com acurácia, as proporções dos materiais utilizados na construção de uma ponte. Há os que erram, em todas as profissões, mas são casos de exceção, não regra.

Se, no caso dos jornalistas, escrever bem quando estão fazendo reportagens é uma técnica aprendida, o mesmo não ocorre quando se arriscam na ficção. Tão difícil quanto um competente pianista compor uma obra com qualidade é um jornalista escrever um bom romance. Aí, já estamos entrando no domínio da arte e, mais do que perícia, treino e dedicação, é necessário, ainda, um ingrediente fundamental: o talento.

Justamente por isso, é pra se comemorar quando um jornalista se arrisca a escrever ficção e obtém um bom resultado. E este foi o caso de Fernando Scheller e seu primeiro romance O amor segundo Buenos Aires. Trabalhando, atualmente, como repórter do Estadão, ele já foi jornalista da Gazeta do Povo, da TV Globo e da Deutsche Welle, na Alemanha. Escreveu um livro reportagem sobre o Paquistão, mas esta é sua primeira incursão na ficção.

Nas raríssimas vezes que eu me aventurei a escrever alguma ficção, só consegui fazê-lo na primeira pessoa. Não sei se isso é mais fácil para qualquer um ou se é uma deficiência minha, mas esta é uma técnica que traz duas dificuldades fundamentais. A primeira, é que o leitor tende a ficar com a convicção de que se trata de um texto autobiográfico e a segunda, está no fato de que, escrevendo assim, fica mais difícil expor o que se passa na cabeça das outras personagens da história.

Scheller conseguiu se livrar destas dificuldades de maneira muito criativa. Em cada capítulo, assume a pessoa de uma das personagens, falando a respeito de uma outra. Com isso, consegue que o leitor compreenda o que se passa na mente de cada uma delas e, também, logra estabelecer as relações interpessoais, sem precisar se utilizar do expediente do diálogo.

O que achei mais interessante, na utilização desta técnica, é que, partindo da voz de cada uma das personagens, ele consegue contar a história sem tecer nenhum juízo de valor. Na trama não há mocinhos nem bandidos. Todos têm uma motivação para fazer o que fazem. E cada um tenta lidar com seus medos e fantasmas da maneira que consegue.

A história fala, sobretudo de amor (e de desamor). Trata, aliás, de tipos de amor e mostra que toda a forma é lícita e possível. E, enquanto eu lia o livro, ia me lembrando da canção Paula e Bebeto, de Caetano Veloso e Milton Nascimento, em que é cantada, repetidamente, a frase que talvez pudesse resumir este livro: “qualquer maneira de amor vale a pena”.

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