Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 1 de setembro de 2019

Por que assistir a Maria Magdalena?

Há muitos exemplos, sobretudo na literatura e no cinema, de obras que contam relatos fictícios inseridos num ambiente histórico, promovendo a interação e até mesmo a convivência entre personagens da ficção com pessoas reais e, até mesmo, ilustres.

Ernest Hemingway, em seu livro Por quem os sinos dobram, conta uma história de amor, entre o professor americano Robert Jordan e a camponesa espanhola Maria, inserida no ambiente da Guerra Civil Espanhola. Jô Soares fez muito sucesso escrevendo histórias absolutamente fictícias ambientadas no Rio de Janeiro, em épocas distintas, com grande rigor histórico e geográfico. No cinema, em Casablanca, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman contam uma história de amor impossível nos papeis de Rick Blaine e Ilsa Lund, numa Marrocos controlada pelo Regime de Vichy, durante a Segunda Guerra.

Há uma categoria peculiar, entretanto, de obras (na literatura e no cinema) em que relatos ficcionais se desenvolvem em um ambiente histórico não convencional. Trata-se dos livros e filmes que se passam na região da Judeia, na época de Jesus Cristo. Usei o termo “não convencional”, pelo fato de que o próprio personagem de Cristo divide gigantescos contingentes de seres humanos em relação à crença na sua existência. A respeito da existência do personagem histórico Jesus de Nazaré, entretanto, cada vez mais, verifica-se uma tendência em aceitar suas evidências (embora, nos meios acadêmicos, haja uma forte resistência a isso, devido à sua fragilidade técnica).

Voltando às obras de arte, ou ao entretenimento, acabamos de acompanhar os 60 capítulos de uma série mexicana, recheada de atores colombianos, produzida pela Sony Pictures e exibida, no Brasil, pela Netflix, chamada Maria Magdalena. E aí, alguém pode perguntar: Por que uma série como esta pode interessar a um ateu convicto, como eu? Posso dar 4 motivos:
  • Embora não tenha fé em nenhum tipo de divindade e nem nutra, dentro de mim, qualquer espécie de crendice, reconheço o fato da humanidade, ao longo de sua evolução, ter se guiado por distintas formas de crenças, como as mitologias da idade antiga com religiões politeístas; as crenças monoteístas dominantes hoje em dia, sobretudo no ocidente; sem deixar de citar os credos originários da África negra e das Américas pré-colombianas. Respeito todo tipo de fé, reconheço alguma virtude em quase todas as religiões e desconfio de todas as igrejas. Quem me acompanha pelo Facebook ou neste esquecido blog, sabe de meu interesse pelo cristianismo e pela figura de Jesus de Nazaré e seu impacto na nossa história e filosofia (prova disso é a indicação deste livro que fiz há 13 anos). Por isso, não iria deixar de ver esta série.
  • O segundo motivo é a origem da série. Nós temos uma tendência de zombar dos programas e novelas produzidos na América que fala língua espanhola. É, aliás, comum que, nós, brasileiros, ridicularizemos as produções mexicanas ou colombianas, qualificando-as como de segunda categoria, mesmo que conheçamos produções europeias e norte-americanas tão ou mais caricatas. Por mais histriônica que possa ser a maneira dos atores e atrizes latinos interpretarem seus papeis, seria muito mais enriquecedor, para todos nós, se compreendêssemos que isso é, apenas, uma maneira diferente de atuar. Além do mais, na série, temos, ao menos dois bons atores colombianos: César Mora, que interpreta Herodes Antipas, e o ótimo Andrés Parra, que faz o papel de Simão (Pedro). Andrés Parra, aliás, foi quem interpretou de forma magistral o protagonista no seriado Pablo Escobar, El Patrón del mal, uma novela de longuíssimos 74 episódios, que vale a pena ser vista só por causa deste ator. E, se tudo isso não bastasse, o seriado exibe mulheres belíssimas, como María Fernanda Yepes, Jacqueline Arenal, Danielle Arciniegas, Susana Torres e Juana Arboleda.
  • O seriado tem um viés, fundamentalmente, feminista. Mostrando uma sociedade (tanto a romana quando a judia) em que as mulheres não tinham vez, voz nem espaço, a trama dá a diversas personagens femininas (Salomé, Abigail, Prócula etc.), oportunidade de expressar seu descontentamento com este estado de coisas. Sem contar a protagonista, dona de um discurso dominante e empoderado.
  • Por fim, como as evidências históricas são frágeis e cheias de lacunas e incertezas, quem escreveu o roteiro desta série, teve uma liberdade criativa que, em alguns momentos, beirou a literatura fantástica. Podemos dizer, utilizando uma linguagem mais moderna, que, em certos episódios, eles “viajaram na maionese” (com tudo de positivo que esse termo pode encerrar). A série tem pitadas de todo e qualquer ingrediente possível. Tem muito drama e violência (o volume de líquido simulando sangue deve ter arrebentado o orçamento da produção). Tem erotismo, suspense e humor. E tem, ainda, algumas coisas bem bizarras, como os trejeitos exageradamente afeminados de Caifás e seu sogro Anás, ou, então, a legenda em português que indica, além do que foi dito pelos personagens, todo tipo de ruído, como tilintar de moedas ou relinchar de cavalos!

Enfim, é um seriado que assistimos com prazer.





segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Maria Bonita


A primeira coisa que se percebe ao ler o livro Maria Bonita –sexo, violência e mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros, é a facilidade com que o leitor consegue se transportar para o ambiente do sertão nordestino. Esta, aliás, é a principal característica dos grandes relatos.

Livros sobre cangaceiros e, sobretudo sobre Lampião, há muitos. Alguns mais fantasiosos, em que se busca encontrar algo de romântico e aventureiro no cangaço, outros, tendenciosos, em que se tenta classificar cada bandido como uma espécie de Robin Hood sertanejo e, felizmente, há aqueles sustentados por criteriosa pesquisa historiográfica. Nesta última classificação é possível enquadrar Guerreiros do sol de Frederico Pernambucano de Mello, por exemplo.

O livro sobre Maria Bonita se enquadra, também, nesta categoria, mas o que ele traz de novidade é a visão da autora sobre a participação feminina no cangaço. Com isso, o principal mito que ela derruba é a crença que imperou, nos últimos 80 anos, de que as mulheres que entravam no cangaço o faziam por vontade própria, movidas por uma visão romântica (neste sentido, talvez o cinema nacional tenha prestado um grande desserviço à história).

Na narrativa, a autora mostra que a grande maioria das mulheres que “caíram” no cangaço foram raptadas e, sucessivamente, violentadas por homens extremamente cruéis, que as tratavam como se fossem seus donos. Relata a ética prevalecente no cangaço (e na sociedade da época, em todo o sertão) em que a mulher não tinha direito a voz ou a vontade. Não se furta, entretanto, a ressaltar que, em pouquíssimos casos, houve sim, mulheres que se uniram aos bandos de cangaceiros por vontade própria, sendo, inclusive, o caso de Maria Bonita.

Corajosamente, não há, na narrativa, uma tentativa de dourar a pílula quando se trata de relatar os casos de extrema violência, o que ajuda a deixar as coisas sem nenhuma sombra de dúvida. Mostra, além disso, que esta extrema violência não está restrita às atitudes dos cangaceiros, mas é aplicada, também, por agentes da polícia, em igual dose de crueldade daquela praticada pelos bandidos, contra velhos, mulheres e crianças.

E por falar em polícia, aliás, o livro escancara as relações promíscuas existentes entre os bandoleiros e as autoridades e os grandes fazendeiros.

Eu me interesso muito pela história do sertão nordestino da primeira metade do século passado, já que, na caótica profusão de diferentes nacionalidades que corre em minhas veias, há uma parcela de sangue pernambucano e sertanejo. Talvez por isso, eu tenha achado o livro tão delicioso.

domingo, 16 de dezembro de 2018

O Tiradentes


Termino de ler a biografia de Tiradentes, escrita por Lucas Figueiredo, convicto dele ter sido um dos livros mais interessantes que li este ano. Construído sobre um processo magnífico de pesquisa, tem o rigor de um trabalho acadêmico, mas o resultado é o de um folhetim que prende o interesse do leitor do começo ao fim. O rigoroso cuidado com a ordem cronológica dos fatos, mesmo quando o cenário muda de cidade ou até de continente, é um dos fatores que garantem a fluidez do texto.

A enorme quantidade de detalhes, devidamente comprovados em quase cem páginas de notas bibliográficas, utilizada para contar esta história, em nenhum momento se mostra exagerada, já que, cada um destes detalhes vai ter, em algum momento do texto, sua razão de ser.  

Escapando da armadilha em que muitos biógrafos costumam cair, o autor não se comporta como um fã ardoroso do biografado. Mostra discernimento para pontuar características positivas e negativas do personagem e, com isso, deixa uma margem saudável para que o leitor possa refletir e tirar, ele mesmo, algumas conclusões.

Um evento que me provocou reflexão foi a interação que, em dado momento da história, um brasileiro adepto da independência brasileira do reino de Portugal, interage, na Europa, com Thomas Jefferson, principal autor da declaração de independência dos Estados Unidos. O texto desta declaração será fonte fundamental para a disseminação das ideias libertárias dos inconfidentes mineiros.

Um dos trechos deste texto dizia: “Todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais se contam a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. É curioso que, apesar do caráter extremamente libertário desta declaração, o tema do fim da escravatura não tenha passado perto das preocupações de Thomas Jefferson, nem da maioria dos conjurados mineiros, nem mesmo de Tiradentes. Como se diz de maneira anedótica, todos os homens nascem iguais, mas uns são mais iguais que outros.

Dividido em partes, que vão da origem à execução de Joaquim José da Silva Xavier, a trama, ocorrida na segunda metade do século XVIII, nos remete, inúmeras vezes, ao Brasil de tempos mais modernos. É impossível não pensar no que ocorreu com Vladimir Herzog, no auge da ditadura militar, quando lemos sobre a cena do, mais que suspeito, “suicídio” de Cláudio Manuel da Costa.

Já as características do processo de julgamento dos inconfidentes com manipulações de provas e o uso das delações como principal motor das investigações (nas quais o bônus do delator é mais fácil de ser conseguido quanto mais perto seu relato estiver do desejo daquilo que o inquiridor deseja ouvir) nos remetem a um Brasil muito mais atual.

Enfim, se eu puder indicar um livro para se presentear, neste natal, esta é minha indicação: O Tiradentes, de Lucas Figueiredo.

sábado, 24 de novembro de 2018

Som, imagem e poesia

O Grande Circo Místico é um poema de Jorge de Lima, alagoano parnasianista/modernista, constante do livro A Túnica Inconsútil, lançado em 1938. Seu texto é quase prosa, no qual se pode encontrar, entretanto, a mais pura poesia, basta saber como.

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps -
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
Jorge de Lima (de A Túnica Inconsútil)

Baseado neste poema, Chico Buarque e Edu Lobo criaram, em 1983, algumas das mais inspiradas canções do nosso cancioneiro popular para um espetáculo do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, com roteiro de Naum Alves de Souza. O disco com a trilha sonora foi um retumbante sucesso. Suas canções o são até hoje.

Na semana passada, estreou nos cinemas, o filme de Cacá Diegues, baseado no mesmo texto e utilizando as canções do espetáculo de Balé.

É pura poesia cinematográfica.

Um filme para se ver na tela grande e não para esperar um lançamento na TV. Afinal, som e imagem reunidos com tamanha beleza merecem o ambiente mágico que só uma boa sala de cinema pode oferecer.





terça-feira, 13 de novembro de 2018

A arte e os intelectuais nos regimes autoritários

Uma das características de períodos com governos autoritários é a negação da cultura. Nestes ambientes, é comum haver um clima de agressão exagerada a qualquer expressão de arte ou manifestação intelectual. Nos regimes autoritários (de esquerda ou de direita), as pessoas são levadas a acreditar que a arte e o pensamento crítico, assim como o conhecimento da história e da filosofia são males em si e que artistas e intelectuais são malfeitores.

Nos regimes totalitários de direita, estas pessoas são classificadas como comunistas (mesmo tantos anos após a queda do muro de Berlim este tipo de argumento ainda seduz hordas de histéricos). Nos regimes totalitários de esquerda a arte e o pensamento intelectual são formatados para servir à burocracia do estado. Neste aspecto, os regimes totalitários, em todo o espectro, se igualam (na verdade, se igualam em muitas outras situações). Todos suprimem e perseguem os artistas e intelectuais.

Arte e pensamento só florescem em ambiente de liberdade ou na luta para conquistá-la.

Eu não sou artista e, muito menos, intelectual, mas encaro a arte e o pensamento como os dois mais importantes ingredientes para meu enriquecimento pessoal (não estou falando de dinheiro, é claro). É através da leitura e da compreensão das mais variadas manifestações artísticas que eu tento me realizar como ser humano e extrair prazer da vida. Eu estranho quem, tendo acesso a isso, consiga viver sem. Se as pessoas procurassem experimentar o prazer que isso proporciona veriam quanto bem isso faz.

Entendo que a maioria das pessoas, sobretudo no Brasil, não tenham este acesso. Comer, beber, ter onde morar e outras coisas comezinhas são preocupações mais urgentes. É justamente por isso que eu defendo um modelo de estado mais justo, com menos desigualdade, com mais solidariedade e menos violência. Um mundo em que estas questões corriqueiras não fossem tão urgentes possibilitaria, para mais pessoas, a oportunidade de experimentarem a satisfação que o saber e o conhecimento proporcionam.

O modelo brasileiro alija uma porção esmagadora da população da possibilidade de encontrar este conhecimento e este prazer. Empurra esta parcela da nação ao consumo de entretenimento e tenta convencer a todos que estão consumindo arte. Não tenho nada contra o entretenimento, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como não cansava de repetir o Tim Maia.

Esta situação, entretanto, não é gratuita. Sempre foi interessante, para quem detém o poder, impedir o acesso ao conhecimento que produza reflexão. Foi assim em toda nossa história republicana, foi assim no nosso período imperial. E, não por acaso, sempre que há algum risco de que o pensamento crítico possa prosperar na sociedade, a reação recrudesce e conduz o país a um ambiente irrespirável. E nesse ambiente rarefeito, a incultura passa a ser virtude.

É por isso que se defende um modelo de educação sem cultura e sem pensamento crítico. Confundem educação com treinamento. E isso é muito útil para conservar as coisas como sempre foram. 



domingo, 11 de novembro de 2018

Pensando a solidão

O mais novo livro de Leandro Karnal é um ensaio a respeito da solidão. Dividido em 6 capítulos, ele inicia com uma visão bíblica da origem do homem, ser solitário (e feliz), num paraíso incontestável, até a criação de um novo ser, a partir de sua costela. É só a partir daí que Adão percebe que vivia sozinho, situação absolutamente natural, para ele, até então. Desta forma, passa a ter ideia do que era viver assim, com suas vantagens e desvantagens. O autor identifica, nesse ato do criador, uma censura à solidão, que percebe, também, em documentos de outros credos, como a Torá.

Como em um filme, numa troca de planos rápida, avança até o século XIX, para tratar da figura de Charles Darwin, pai da teoria da evolução, posição diametralmente oposta à mística criacionista. Aos 29 anos, Darwin caminhava para o presumível último quarto de sua vida, já que àquela época, o tempo de vida médio do ser humano não ultrapassava os 40 anos (ele, na verdade, viveu bem mais do que isso). Não era, portanto, o momento de decidir se deveria, ou não, se casar. Contrariando, porém, o costume da época e, refletindo entre prós e contras, ele toma a decisão de casar-se.

Num dos extremos da dicotomia entre fé e ciência, o cientista conclui, assim como o criador do universo, que não é bom que o homem esteja só (que é, aliás, o título do primeiro capítulo). A partir daí, Karnal parte para uma investigação a respeito da validade (ou não) desta afirmação. Para fazer isso, busca, de forma consistente, entender, exatamente, o que seja a solidão. Avança, mais uma vez, no tempo e chega aos dias atuais ao utilizar, para alcançar este entendimento, duas realidades bastante conhecidas de todos nós: o casamento e as relações pessoais nas redes sociais. O segundo capítulo, aliás, em minha opinião o melhor de todos, trata, justamente, deste mundo virtual e intitula-se A solidão entre milhões.

Partindo da observação do cotidiano, conclui que nunca estivemos tão conectados a tanta gente e, ao mesmo tempo, com tão pouca interação real. E, neste caso, interação real não se refere, apenas, aos relacionamentos ao vivo, em carne e osso, com outras pessoas, mas, sobretudo, ao formato que este meio propicia. O principal fator que falseia a realidade na forma de interagir através da rede é a possibilidade de sermos os “donos” da relação.

Adicionamos, curtimos e seguimos somente quem pensa como nós. Em referência àqueles cujas opiniões não coincidem com as nossas temos várias opções: desde ignorar até apagar o contato. Com isso, em lugar de interagir com outras pessoas, estamos, na verdade, interagindo com nós mesmos e, assim, ao invés de evoluirmos, internamente, através da exposição à diversidade de ideias, apenas reforçamos nossos próprios valores e convicções, ao mesmo tempo que sedimentamos nossos defeitos e preconceitos.

Ao analisar o casamento, ele conceitua o que chama de solidão a dois, que é aquela situação pela qual alguns casais passam quando a chama da paixão se esvai. Se a relação se sustentava apenas devido a este fogo, se não havia nenhum outro ingrediente, como admiração, por exemplo, a convivência passa a ser tão ou mais solitária do que a que ocorria antes de encontrar a pessoa amada.

Na busca do entendimento do que seja a condição de estar sozinho, chega a duas definições, parecidas, porém opostas: a de solidão e de solitude.

Em minha opinião, a melhor e mais fácil definição que diferencia estas duas palavras vem do teólogo alemão Paul Tillich:

Solidão expressa a dor por estar sozinho.

Solitude expressa o prazer de estar sozinho.

A partir deste ponto, o autor passa a enumerar exemplos de situações consideradas positivas em estar sozinho. Aborda a falsa solidão que é aquela em que a gente se encontra quando está absorto durante a leitura de um livro. Não há nada de solidão nesta atividade. É justamente nesses momentos que estamos travando um colóquio poderoso com o autor do livro e com o “eu mesmo”, o eu verdadeiro, o outro eu, que, muitas vezes, não conhecemos ou do qual nos escondemos.

Ele recorre, novamente, aos exemplos religiosos para mostrar que os momentos mais importantes das existências de Jesus Cristo, de Moisés e de Maomé, ocorreram quando eles estavam sozinhos no deserto, num monte isolado ou numa caverna.

No quinto capítulo do livro ele elenca inúmeros casos de solidão (e de solitude) presentes nas artes e, sobretudo, no cinema. Aqui, devo ser honesto, não cheguei a ler todo o capítulo, já que me pareceu, mais do que um ensaio produtivo, uma ostentação gratuita de conhecimento cultural. Desta maneira, pulei o capítulo quase no final e fui para o último (o segundo que mais gostei).

Este sexto capítulo, intitulado As solitárias, trata da utilização da solidão como forma de punição nas instituições carcerárias. Demonstra, através de estudos científicos e de depoimentos de vítimas, que a imposição compulsória da solidão pode ser até mais nociva ao ser humano que a tortura física. Aliás, a prática da solitária, como penalidade nas penitenciárias, já foi abolida em quase todo o mundo civilizado. Os Estados Unidos e o Brasil são dois exemplos, porém, de países em que ela é utilizada em larga escala.

O título do livro, O dilema do porco espinho – como encarar a solidão, é uma referência à metáfora, criada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer, para ilustrar o problema da convivência humana. Publicada como uma parábola em sua obra Parerga e Paralipomena, em 1851, acabou ficando famosa, apesar de ser considerada um texto menor do filósofo. Num ambiente de frio extremo, os animais costumam juntar seus corpos, uns aos outros, para se aquecer e, com isso, ficar numa situação mais confortável. Este conforto, obviamente, não se aplica aos porcos espinhos. Daí o dilema.

Na conclusão do livro, estar sozinho não é, necessariamente, uma coisa boa ou ruim. Pode ser qualquer uma delas ou ambas, dependendo da situação. Solidão ou solitude, a elas todos nós estamos sujeitos. Basta saber como encará-las.


terça-feira, 30 de outubro de 2018

Simbolismo e conteúdo

Não sou muito afeito a ícones e símbolos. Minha iconoclastia, entretanto, é branda. Não chego ao ponto de destruir símbolos ou queimar bandeiras. Só não me agrada a ideia de idolatria a monumentos ou adoração de imagens. Para resumir, sou mais pelo conteúdo que pela forma.

Nesses meses de campanha eleitoral, foi muito comum a utilização da bandeira e do hino brasileiros, por parte dos seguidores do Nefasto, para ostentar um pretenso patriotismo*. Estes dois símbolos passam ao largo de minha concepção de pátria. Pátria, para mim, se refere à terra e ao povo que nela vive. Vincular a pátria, exclusivamente, a estes símbolos, configura patriotada e não patriotismo.

Além disso, confesso que tenho certa má vontade com nossos símbolos, tanto o hino quanto a bandeira.

Do hino me agrada muito a melodia, supostamente composta por Francisco Manuel da Silva. Ocorre, porém, que os primeiros compassos desta melodia são idênticos ao Responsório Sétimo de Matinas de Nossa Sra. da Conceição, do Padre José Maurício Nunes Garcia, principal compositor brasileiro daquele período, de quem Francisco Manuel, aliás, um compositor obscuro, foi aluno.

Não é o plágio na melodia do hino, entretanto, que me incomoda. Há outros hinos acusados de plágio, mundo afora. Há quem encontre similaridades exageradas entre o hino do Uruguai a um trecho da ópera Lucrezia Borgia, do compositor italiano Donizetti, assim como a introdução do hino da Argentina é um tanto parecida com a Sonatina número 4, opus 36, de Clementi. Há outros exemplos, mas, isso importa pouco. A melodia do nosso hino, para o meu gosto estético, é belíssima.

Minha má vontade é com a letra de Joaquim Osório Duque Estrada. Além de rebuscado, o texto é mentiroso, o que se observa logo no início. Afinal, todos sabemos, povo nenhum, heroico ou não, emitiu qualquer tipo de brado, muito menos retumbante, por ocasião da proclamação da independência, que não passou de um arranjo entre a elite local e o representante da Coroa portuguesa, à época.

Minha reserva, quanto à bandeira, não está na combinação de cores, que, aliás, me agrada. Nem na disposição das formas, embora me pareçam um exercício de geometria. Minha cisma é com a frase na faixa.

Tomada do positivismo de Augusto Comte, corrente filosófica cujo lema era: "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim", os articuladores da proclamação da república resolveram retirar, exatamente, o item que mais me seduz. Afinal, mais do que ordem e progresso, é o amor, em minha forma de ver o mundo, que deveria servir de lema ao povo de uma nação.

Repito, não sou iconoclasta ao ponto de defender a destruição de símbolos e bandeiras. Prefiro, entretanto, ícones cujo conteúdo seja, ao menos, verdadeiro.

Afinal, como eu já disse, sou mais pelo conteúdo que pela forma.


*Essa gente, aliás, tem grande dificuldade em escolher seus símbolos. Haja vista a camiseta da CBF, indumentária elegida pelos articuladores das manifestações de 2014. Embalagem da tramoia que apeou Dilma Rousseff do poder. Há instituição mais imaculada que esta?


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O pensamento conservador

No mais interessante, entre os 5 primeiros episódios do programa Amigos, Sons e Palavras (de Gilberto Gil), no Canal Brasil, Renata Lo Prete cita uma frase, a respeito das informações veiculadas através do WhatsApp:

“Desconfie, especialmente, da informação com a qual você concorda, com a qual você se identifica. Porque é, justamente, no reforço das suas convicções, no reforço dos seus preconceitos, que o algoritmo opera.”

Eu tenho afirmado, com certa insistência, tanto aqui quanto nos diálogos que travo no Facebook, sobre a necessidade de as pessoas estarem abertas ao contraditório. Tenho firme convicção de que esta atitude é que enriquece o debate e aprimora as reflexões. Fechar-se às ideias do interlocutor, assim como desqualificá-las, antecipadamente, tolhe nossa capacidade de evoluir.

Considerar o contraditório não significa concordar com ele. Aliás, venho insistindo: concordar ou discordar são coisas absolutamente irrelevantes em qualquer discussão. Quando, após iniciar um debate, recebo como resposta do meu antagonista a frase: “eu discordo”, em lugar de apresentar uma argumentação, já sei que a discussão será paupérrima.

Há muito tempo, tenho sugerido às pessoas que leiam livros e textos que apresentem argumentos contrários às próprias convicções. Conversem, de peito aberto, com pessoas com visões diferentes de mundo. Acredito que isso enriquece, aprimora, provoca evolução.

Assim como sugiro a amigos conservadores que leiam os autores progressistas, procuro conhecer o pensamento conservador.

Quando éramos jovens, líamos muitos autores de esquerda e, com a arrogância típica da juventude, desprezávamos os autores de direita. Assim como nós, os jovens conservadores execravam os nossos livros. Uma das poucas vantagens que nos traz a maturidade é a de perceber que o mundo não é tão maniqueísta quanto pensávamos.

Confesso que, atualmente, não encontro, no Brasil, um autor com pensamento conservador que me anime à leitura. Bons tempos eram os de quando podíamos ler um texto de José Guilherme Merchior ou Roberto Campos. Discordávamos deles, mas escreviam tão bem que dava até raiva! Hoje, a perspectiva de ler algo de Olavo de Carvalho ou Luiz Felipe Pondé dá certo desgosto.

Por isso, recorro a um pensador conservador inglês, Roger Scruton. Seu livro mais importante, O que é conservadorismo, de 1980 (com revisões em 1984 e 2001) é quase um manual. Conceitua a atitude conservadora e aborda aspectos como autoridade, estado, propriedade e trabalho sob esta luz. É muito didático, no que diz respeito a entendermos o que se contrapõe ao pensamento progressista.

Não é, entretanto, este famoso manual que mais me instigou, entre as obras deste autor e, sim, Confissões de um herético, uma coletânea de ensaios esparsos, organizados em 12 capítulos, nos quais aborda os mais diversificados temas da vida cotidiana. Se não é um texto tão acadêmico quanto o livro mais famoso, o estilo informal destes ensaios nos deixa perceber, com mais clareza, os valores e os preconceitos contidos nesta forma de pensar e enxergar o mundo.

Inicia o livro com um capítulo dedicado à mentira e ao fingimento, fazendo uma instigante comparação entre as duas atitudes. Discorre sobre isso, tendo a arte como pano de fundo e utiliza a comparação entre modernismo e classicismo para fazer a equivalência entre pensamento progressista e conservador, respectivamente.

No segundo capítulo, um dos mais divertidos, no livro, ele traça uma comparação entre a relação das pessoas com animais de estimação urbanos e a relação com os animais rurais e silvestres. É explicitamente ácido quanto à primeira.

E segue, no livro, discorrendo sobre governo, dança, arquitetura, redes sociais, o luto, a morte e a natureza, entre outros temas. Faz isso, sempre, defendendo um ponto de vista conservador e absolutamente crítico à interferência do estado em qualquer uma das atividades sobre as quais discorre.

Na defesa intransigente de um “estado mínimo”, critica, por exemplo, a evolução da medicina e da indústria farmacêutica que, segundo sua visão, não deveria ter avançado a ponto de permitir que as pessoas vivessem tanto, interferindo na naturalidade da morte. Defende que o estado não deveria subsidiar o atendimento universal da população, mas deixasse que, “naturalmente”, quem não tivesse condições materiais para bancar um tratamento, vivesse pelo tempo “condizente” com sua posição social.

Aliás, sua convicção de que as pessoas deveriam se conformar com a vida que sua posição na sociedade lhes reserva está presente em praticamente todos os textos, seja de forma direta, seja subliminarmente.

Discordo quase integralmente do que ele escreve, mas, como eu já disse, isso é absolutamente irrelevante. O termo “quase” eu emprego por ter me identificado com um componente conservador que é o relacionado à arte. Percebo, em mim, há muito tempo, um conservadorismo neste campo, sobretudo no que se refere à música.

De salutar, em seu pensamento puramente conservador, há a possibilidade de identificar uma absoluta aversão a qualquer forma de governo autoritário. Em nenhum momento, em nenhum dos textos, ele ao menos flerta com qualquer ataque à democracia. E esta, juntamente com a superioridade estética de seu texto, é uma característica que o difere da maioria dos pensadores conservadores de nosso país.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O antipetismo e a corrupção


A percepção da corrupção, numa sociedade, depende da atuação de 2 entidades: o órgão oficial responsável por investigar atos de corrupção e a imprensa. Quanto maior a capacidade que estas entidades tiverem de exercer seu papel maior será a chance de se perceber o grau de corrupção.

Quando uso o termo capacidade, estou incluindo, neste balaio, 3 fatores: liberdade de ação, recursos materiais e disposição de agir. Isso vale tanto para as entidades investigativas quanto para a imprensa.

Quanto mais esses 3 fatores aplicados a estas 2 entidades forem atendidos, plenamente, mais a sociedade vai conseguir atingir a real percepção da corrupção.

Durante a campanha eleitoral deste ano, muito mais do que as propostas, as diferenças ideológicas e o preparo dos candidatos, o que tem motivado os debates entre eleitores é a rejeição ao que cada um deles representa.

Do lado do candidato apontado como favorito pelas pesquisas, a tônica da campanha está baseada na teoria de que o Partido dos Trabalhadores (PT) cometeu mais atos de corrupção em seu período de governo do que em qualquer outra época, no Brasil. Isso significa afirmar que, durante esses anos, o grau de corrupção foi maior do que fora às épocas dos governos FHC, Collor e do regime militar.

Uma enorme parcela do eleitorado recebe, digere e aceita esta afirmação sem avaliar sua consistência. E faz isso por não submeter a comparação, que nela está inserida, à luz do ambiente de cada época. A maneira de avaliar esta informação, de forma apropriada, é comparar estes ambientes, no tocante às 2 entidades e 3 fatores aos quais me referi no início do texto.

No período imediatamente pós-ditadura, as entidades oficiais não dispunham das ferramentas de que dispõem hoje, mas a imprensa teve um papel importante na veiculação de informações, sobretudo no governo de Fernando Collor e seu lugar-tenente PC Farias.

Itamar Franco, após assumir, criou, em dezembro de 1993, uma comissão especial para investigar crimes de corrupção, num primeiro movimento para instrumentalizar melhor as entidades investigativas. Esta comissão foi extinta nos primeiros dias após a posse de FHC.

Nas duas edições de seu governo, aliás, além de controlar com mão de ferro a atuação da Polícia Federal, FHC contou com o beneplácito de grande parte da imprensa. Isso criou um ambiente muito propício para se blindar a divulgação de casos de corrupção que foram, desde a compra de votos para aprovar a emenda da reeleição, passando pelos casos da privatização da Telebras, das obras do Metrô de São Paulo, PROER, SIVAN e outros que, posteriormente, vieram à tona e estão, hoje, bem documentados.

Seu procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, ficou jocosamente conhecido pela alcunha de “engavetador-geral da República”. Isso acabou explicando o motivo dele ter sido escolhido para o cargo, apesar de não figurar na lista tríplice que, tradicionalmente, é preparada pelos procuradores e enviada ao presidente da República.

Na gestão de Lula, pelo contrário, da lista dos nomes escolhidos pelos procuradores, aqueles que figuravam em primeiro lugar foram os indicados para a PGU, tanto em 2003, Claudio Fonteles, quanto em 2005, Antônio Fernando de Souza que, mesmo tendo sido o relator da denúncia do mensalão, foi reconduzido ao cargo em 2007.

Em seus 2 mandatos, Lula instrumentalizou a Polícia Federal, o que possibilitou que o número de investigações ocorridas, livremente, durante este período, tenha sido 50 vezes maior que no período tucano. Além disso, a imprensa, de 2002 a 2008, foi muitíssimo mais vigilante (e é assim mesmo que ela deve ser, mas, com todos), em comparação à maneira aquiescente com que tratou o período anterior.

Desta forma, fica muito bem configurada a diferença de ambiente relativa aos 3 fatores envolvendo as 2 entidades a que me referi nos primeiros parágrafos. E, assim, se constrói uma percepção de “grau de corrupção” muito diferente, também.

Tudo isso, sem contar com o período do regime militar em que as investigações, sobre qualquer assunto, só eram permitidas com a autorização das forças armadas e à imprensa, sob censura, era imposta uma proibição de divulgar qualquer notícia que desabonasse o governo. Essa dobradinha, investigação zero e imprensa calada, produziu, no imaginário popular, a ideia de uma época em que não havia corrupção no Brasil. Há, até hoje, ingênuos que sustentam e agitam esta bandeira!

Hoje, há vasta documentação sobre isso. Só não enxerga quem não quer ver. Para quem queira, indico não apenas 1, mas 2, 3, 4, até 5 exemplos para se informar.

A campanha do candidato favorito nas pesquisas está calcada num sentimento de antipetismo que foi construído, principalmente, sobre dois alicerces: um, que afirma que no tempo do PT o grau de corrupção foi “muito maior” que em qualquer período da história e outro, que insiste que, na época da ditadura militar, não havia corrupção no Brasil.

Qualquer pessoa pode votar no candidato que quiser, isso a lei permite (o que, aliás, não acontecia quando os militares mandavam). Uma pessoa pode votar em Bolsonaro por preferir sua proposta de modelo econômico (caso descubra qual é). Pode votar nele por compartilhar de suas ideias antidemocráticas. Pode votar nele, até, por ser racista, por ser homofóbico, por ser misógino. Estes últimos motivos são imorais, mas permitidos pela lei.

Agora, a pessoa que vota neste homem alegando que é devido à corrupção do PT ter sido a maior da história e que com os militares ela vai se acabar, essa pessoa vai precisar refletir melhor e confessar, não pra mim (não é da minha conta), mas pra si, o verdadeiro motivo que a move. Para, pelo menos, não ser hipócrita consigo mesma. 



segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Chuva de opiniões na rede


Numa discussão que tive com alguns amigos, ainda ontem, pelo Facebook, voltei a aludir a uma convicção que tenho desde que entrei, pela primeira vez, nesta casa de loucos. A de que o FB é uma espécie de mesa de boteco.

A internet é uma ferramenta que dá oportunidade pra que todo mundo participe e, aí, cada um faz isso da maneira que consegue.

Não é muito diferente de discussão em boteco*, que tem de tudo: fala mansa, gritaria, soco na mesa e até ameaças de bofetada (é quando, normalmente, entra a turma do “deixa disso”).

O que falta, aqui no FB, é a mesma coisa que falta no boteco, ou seja, opinião serena e embasada. Tem palpite, cutucada, desabafo, agressão verbal, mas não tem argumentação estruturada.

O grande problema é que, através deste ambiente, muita gente está decidindo seu voto.

Antigamente, as pessoas utilizavam os jornais, o rádio e a TV para se informar. Por mais que alguns órgãos de imprensa pudessem ser tendenciosos, sabiam que nenhum deles teria a audácia de fabricar notícias absurdamente falsas (até por medo de levar processos).

Chegavam ao trabalho e, como o ambiente não permitia a balbúrdia, participavam de discussões relativamente ordeiras e, com isso, acabavam tendo a oportunidade de ouvir algum tipo de argumentação minimamente estruturada. Na escola, sempre conseguiam, do professor, alguma dica de um livro onde pudessem se aprofundar em determinado assunto. Alguns chegavam ao capricho de, ao menos, folhear este livro e ler algumas páginas.

Nada disso impedia que, no encontro no boteco, entre uma cerveja e um prato de torresmo, uma cachaça e um pires de tremoços, uma batida de limão e uma porção de salaminho, a arruaça fosse a mesma de sempre, mas, pelo menos, em seu íntimo, cada um tinha sua opinião construída, fruto de reflexões estimuladas pelas informações adquiridas.

Hoje, aparentemente, as redes sociais substituíram o boteco, com o agravante de ter um alcance muito maior do que os integrantes da mesa ao lado. Qualquer um emite opiniões sobre tudo, desde a quantidade de anestésico em cirurgia de esterilização de gatos até o melhor método de ministrar aulas de química orgânica.

Todo mundo se sente livre para opinar sobre o que quiser na rede social, sem necessidade de informar-se ou estudar sobre o tema escolhido. E, se algum interlocutor contesta o pitaco, sempre há a opção de esvurmar o mancebo. O pior, neste processo, é que ele é retroalimentado positivamente, pois, toda imbecilidade que qualquer um postar na rede pode se transformar em observação genial, caso outros imbecis inundem seu post com sinais de positivo, coraçõezinhos vermelhos e risadinhas para reforçar a rematada tolice (além de alimentar sua vaidade).

Pode ser que, com o tempo, as pessoas aprendam a utilizar as redes sociais para debater de forma mais estruturada, baseando seus argumentos em informações confiáveis e em estudo consistente. Por enquanto, estamos muito longe disso.


 *Em tempo, a única coisa que a discussão de boteco tem de diferente do FB (e para melhor) é a birita.