Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Política e fé

Frei Betto é um escritor que acredita em deus e no socialismo. Eu não acredito numa coisa nem noutra. Isso não quer dizer que eu discorde dele. Não é necessário compartilhar das mesmas crenças para ter os mesmos valores e, neste sentido, coincidimos.

Minha relação com a religiosidade se dá a partir de 3 óticas. A primeira delas é a fé. Gosto muito de uma frase da escritora Rachel de Queiroz, ateia como eu, que costumava dizer o seguinte: “Eu não tenho fé, porque deus não me deu”. É mais ou menos o que se passa comigo. Simplesmente não tenho. Quando sabem que não acredito em deus, aliás, a reação das pessoas é sempre a mesma, ou seja, perguntam-me: “então, quer dizer que você não acredita em nada?”. É claro que acredito. Acredito no amor, na generosidade e na solidariedade, como forma de melhorar o mundo, por exemplo.

Aprendi, com o passar dos anos, a entender e respeitar a fé que as pessoas sentem por deus. Por qualquer deus. E neste sentido, respeito os que sentem fé em Cristo, sejam eles católicos ou evangélicos e os que têm fé em Buda. Respeito a fé judaica e a fé islâmica, assim como os que professam sua fé nos orixás e os índios que adoravam Tupã. Respeito esta fé pois vejo que ela é sincera, na maior parte dos casos. E percebo, sobretudo, que ela pode fazer bem às pessoas. Grande parte delas, aliás, agarra-se na fé como uma forma de suportar as agruras da vida.

A segunda ótica através da qual eu enxergo a religiosidade é a religião em si. Neste caso, meu respeito está restrito a alguns valores que algumas religiões procuram propagar. Nem todos, entretanto. E reconheço que grande parte das pessoas de fé sente-se mais confortável em poder seguir um caminho, um roteiro, uma receita, um rol de ensinamentos, seja na Bíblia, no Alcorão ou na Torá. Percebo, também, que, apesar da fé sincera que sentem, muitas pessoas têm dificuldade de seguir a maior parte dos ensinamentos.

A terceira ótica é a igreja. Aí, deste ponto de vista, minha resistência é enorme. Na maior parte dos casos, o que consigo enxergar é a igreja manipulando a fé das pessoas através de uma interpretação da religião que atenda a interesses espúrios. Seja a igreja católica com a inquisição, com as cruzadas, com a catequização dos índios na América, seja a igreja islâmica cooptando jovens muçulmanos a vestirem casacos recheados de explosivos, seja o pastor vendendo o encontro com deus e facilitando o pagamento em cheque, cartão ou boleto, e até mesmo o pajé amedrontando os índios e enfraquecendo o poder do cacique.

Toda esta longa explanação foi pra falar sobre o livro Paraíso perdido: viagens ao mundo socialista, de Frei Betto, no qual o escritor narra suas viagens a diversos países, ao longo de sua vida, no qual interagiu com agentes dos governos e das igrejas locais. Questionador como ele só, Frei Betto, em cada viagem, cobrava, de cada representante de estado socialista, a falta de liberdade para as pessoas professarem sua fé e dos líderes das igrejas locais, a falta de compromisso com os pobres.

Adepto da Teologia da Libertação, Frei Betto é um crítico ácido daquela igreja que se alia aos poderosos. Para isto, ele se guia pelo discurso de Cristo. A partir dos evangelhos, tanto os canônicos quanto os apócrifos, ele sempre pregou o acolhimento dos menos favorecidos. E é com este tom crítico e questionador, ora sobre a igreja, ora sobre os governantes socialistas, que a narrativa do livro se desenvolve.

Apesar disso, o escritor acredita na ideia do socialismo. Acredita na possibilidade de um mundo em que as pessoas tenham as mesmas oportunidades e os mesmos direitos. Num mundo em que um homem não escravize e nem explore seu semelhante.

Eu, infelizmente, não acredito que um mundo assim seja possível.

Minha falta de fé no socialismo não se dá pelo fato dele não ter sido implantado em nenhum país com sucesso (até mesmo, porque o capitalismo também não foi). Eu descreio do socialismo, pois ele me parece um sistema muito perfeito para ser implementado pelo ser humano e suas infinitas imperfeições.

Para acreditar no socialismo, eu teria que acreditar que a humanidade, em sua maioria, fosse mais capaz de ser solidária do que de ser egoísta. Eu teria que acreditar que o homem consegue amar o próximo sobre todas as coisas. Eu teria que acreditar que ele foi criado à imagem e semelhança de algum ser onipotente, onipresente, onisciente e justo. Enfim, para acreditar no socialismo, eu teria que acreditar em deus.

domingo, 5 de junho de 2016

História e ficção

Leonardo Padura é um escritor cubano, internacionalmente reconhecido como um dos maiores autores do gênero policial. Confesso que este não é o meu tipo de literatura preferido. Já li, na juventude, uma ou outra coisa de Arthur Conan Doyle ou Agatha Christie, autores britânicos, considerados os papas deste tipo de história.

O típico romance policial, normalmente, envolve um misterioso crime que só é desvendado no final, no último capítulo, quando o leitor descobre a identidade do criminoso e os motivos que o levaram a cometê-lo.

O Homem que amava os Cachorros, de Padura, o primeiro que li deste escritor, é um romance policial em que, tanto o autor quanto os motivos do crime, são conhecidos antes mesmo de se começar a ler o livro. Mesmo assim, a narrativa é eletrizante e, tivesse eu todo o tempo do mundo, teria lido suas quase 600 páginas, de uma vez só.

Misturando ficção com realidade, o texto trata de um famoso assassinato e se alterna em 3 ambientes, o da vítima, o do assassino e o do narrador da trama, esta terceira parcela, a ficcional. O crime é o assassinato do líder político soviético Leon Trotsky pelo militante comunista catalão Ramon Mercader, na cidade de Coyoacán, no México, em 1940.

Qualquer pessoa interessada em história geral conhece, ao menos superficialmente, os fatos mais emblemáticos deste assassinato. O que seduz, no livro, entretanto, é a riqueza dos detalhes que levaram ao seu desfecho, partindo-se da realidade, tanto do assassino quanto da vítima, até chegar no ápice, com o golpe de machado, fatal, na cabeça do velho revolucionário ucraniano.

A partir de um trabalho excepcionalmente meticuloso de pesquisa, o autor nos dá uma mostra bastante clara do ambiente político na União Soviética anterior à segunda Guerra, a rivalidade entre Trotsky e Stalin e a sede com que o ditador soviético perseguiu o criador do conceito da Revolução Permanente, até aniquilá-lo. Mostra como Stalin, após a morte de Lenin, empreendeu esforços para assumir a liderança da União Soviética e implantar uma política de perseguição aos rivais que ficou conhecida como “O Grande Expurgo”. Mostra como esta política atingiu, inclusive antigos aliados e, também, como a perseguição a Trotsky foi incansável, impingindo ao intelectual marxista um périplo extenuante por vários países da Europa até terminar no México, onde foi acolhido pelo artista plástico Diego Rivera e sua esposa Frida Kahlo (com quem chegou a ter um envolvimento amoroso).

O segundo ambiente retratado no livro, mostra as conexões de Ramon Mercader com outros agentes espanhóis cooptados pelo serviço secreto soviético (NKDV) como Caridad Mercader (sua mãe) e Africa de las Heras. Revela sua atuação na Guerra Civil espanhola, o que o credenciou a ser preparado pelas autoridades soviéticas para executar o inimigo mais importante do regime stalinista, e demonstra o quanto a disputa pelo poder, entre os aliados republicanos que lutaram contra Franco, foi fundamental para que a vitória fosse impossível (esta disputa, aliás, é narrada no ótimo livro Lutando na Espanha, de George Orwell, sobre o qual já escrevi aqui).

Na parcela ficcional do texto, narrado em primeira pessoa, Padura aproveita para mostrar o ambiente na União Soviética após a morte de Stalin, sua imagem desmascarada pelo governo de Khrushchov e a posterior tentativa de reabilitação sob o governo de Brejnev, no período ápice da Guerra Fria.

É esta oportunidade, também, que o autor utiliza para fazer suas críticas ao regime cubano, principalmente no que diz respeito à falta de liberdade política. Apesar destas críticas, seu livro foi publicado na ilha sem nenhum tipo de censura.

Enfim, O homem que amava os cachorros, título que é uma referência tanto à vítima, quanto ao assassino (e, também ao narrador) é um livro delicioso para quem gosta de conhecer a história com mais profundidade de detalhes, mesmo sabendo, superficialmente, tudo que é narrado nele. E para aqueles que não têm este conhecimento, nem mesmo superficial (ou não têm este interesse), pode, ainda, ser lido como um ótimo romance policial.