Eu e a Clélia, quando morávamos em São Paulo, sempre tivemos o hábito de pegar sessão dupla no cinema. Chegamos a experimentar sessão tripla, mas é muito cansativo. Além do mais, o cinema nunca é o mesmo sem a tradicional pizza depois do filme. O segredo da sessão dupla é diversificar os tipos de filmes. Evitar assistir dois filmes pesadões é sempre uma boa medida. Há muito tempo não fazíamos isso e ontem resolvemos voltar à velha forma. A Cecília foi com a gente.
Depois de assistir ao leve e delicioso filme O Homem que desafiou o diabo, fomos encarar Tropa de Elite de José Padilha.
Antes de qualquer coisa, devo dizer que o filme, como obra cinematográfica, tem boa qualidade. Tem uma dinâmica ágil, fotografia correta e prende a nossa atenção o tempo todo. A maioria dos atores não tem grande expressão, mas isso evidencia, ainda mais, o talento do protagonista, o excelente ator Wagner Moura, sem dúvida, um dos melhores surgidos nos últimos tempos.
Mas a questão estética e até mesmo a artística é o que menos importa neste filme. Importante mesmo são as reflexões que ele suscita na sociedade. E, neste sentido, o filme tem algumas virtudes e alguns pecados.
A principal virtude é a de fazer uma radiografia na estrutura da polícia militar. Mostrar que a corrupção naquela corporação é o principal motivo para que a violência seja um dos maiores problemas no nosso país. Sim, porque, apesar da história se passar na cidade do Rio de Janeiro, a corrupção que se verifica lá é a mesma em qualquer grande cidade brasileira.
O filme não poupa ninguém. Além de desmascarar a corrupção policial, toma o cuidado de não retratar os traficantes como pobres vítimas de um sistema cruel e selvagem. Sim, nosso sistema é cruel e selvagem e os traficantes colaboram pra isso. E não poupa a classe média, seja quando está engajada em algum programa social numa ONG qualquer, seja quando está consumindo as drogas que alimentam o tráfico.
O eixo central do filme é o retrato de um batalhão especial da polícia, o BOPE, do qual, um dos oficiais assume a narrativa em primeira pessoa. Com isso, humaniza a corporação, o que é até bom, mas esquece-se de humanizar as outras protagonistas da história, como a PM, os traficantes, a classe média, e reside aí, um de seus pecados, já que estes são retratados de forma maniqueísta. Mas o filme, a meu ver, não trata os soldados do BOPE como heróis. E é essa a confusão que está se fazendo a seu respeito. O fato de uma narrativa ser feita na primeira pessoa não significa, necessariamente, que esta seja a posição de seu diretor. Quem está fazendo isto é uma parcela da sociedade. Isto sim é que é grave. E está heroificando este batalhão, baseada num discurso de que nele, não há policiais corruptos, todos são honestos. Mas nesta história não há heróis. Não há para quem torcer.
Antes de qualquer coisa, eu não acredito que haja uma corporação da polícia que esteja imune a ser corrompida, mas, mesmo que isso fosse verdade, o fato de não corromper-se não é suficiente para arrogar-se de honesto. E é isto que o filme, talvez até sem querer, acaba mostrando em relação ao BOPE. Nele, nenhum dos policiais do batalhão é corrupto, mas todos praticam a tortura para obter confissões, todos participam, ou são coniventes com execuções sumárias de bandidos, mesmo que estes já estejam dominados. Estes policiais, no filme, acreditam que agir fora da lei é justificável para combater o crime. Mas não é.
O crime tem de ser combatido com repressão. Não há outra maneira. Mas deve ser reprimido de acordo com a lei. Quando um policial age fora da lei para reprimir uma ação criminosa, ele iguala-se ao criminoso e até o justifica. E quando o filme mostra a ilegalidade na ação do BOPE, acaba desmascarando sua atuação, derrubando o discurso do narrador da história e abrindo caminho para destruir sua heroicidade.
E é aí que a coisa adquire o aspecto mais perigoso. É que uma boa parcela da sociedade não desabona este comportamento desta polícia. São pessoas que embarcam num discurso simplista e aplaudem ações como esta, mesmo que baseadas na ilegalidade. E a oportunidade que o filme dá pra que esta reação aconteça é, possivelmente, seu maior pecado. Sim, pois o filme é muito simplista, o que acaba fechando a porta para outras reflexões, outras conclusões. Uma delas, sempre desprezada quando se fala em tráfico, é discutir quem é, realmente, que ganha o grosso do dinheiro com este negócio. Sim, porque o negócio é milionário e é muita ingenuidade pensar que sejam os chefes dos morros, aqueles que ganham mais dinheiro com ele. Não. Os verdadeiros chefes deste negócio não moram em barracos. Devem morar na zona sul ou na Barra da Tijuca.
Apesar de tudo, o filme deve ser visto pelo maior número de pessoas possível. É bom que seja. Mas é bom que as pessoas tentem tirar suas próprias conclusões. Se for pra receber a conclusão concebida por outro, se querem que a coisa venha já mastigada, então é melhor que economizem seu dinheiro e fiquem em casa assistindo o Fantástico.