Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 19 de abril de 2009

Cinzento

Quando a Clélia me convidou para ir ao cinema assistir o filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, fiquei com o pé atrás, pois, ao ler a sinopse, parecia mais um daqueles filmes no estilo Ao Mestre com Carinho. Aquela fórmula batida, escola cheia de alunos desajustados e o professor criativo que consegue tirar dos meninos aquilo que ninguém sabia que existia. No final, todo mundo se sai bem, são todos gênios incompreendidos, choradeira geral quando acaba a sessão.

Mesmo assim, resolvemos arriscar. Afinal, o filme era francês, tendia a fugir do modelito holiwoodyano e, acima de tudo, tinha sido bem indicado por uma amiga. Além do mais, fomos numa quinta-feira e às quintas-feiras, no cine Galleria, o casal paga meia entrada se der um beijo na frente da bilheteria. Aí juntou a fome com a vontade de comer.

O filme não era nada daquilo que eu temia. Não utilizou-se do velho clichê americano, mas isso não quer dizer que eu tenha gostado. Na verdade, não gostei e nem desgostei. Tinha coisas interessantes, mas não empolgava. É lento demais.

O ponto forte do filme foi mostrar os conflitos entre os descendentes de imigrantes numa Europa que não está conseguindo lidar com isso. Na sala de aula de um colégio público da França, praticamente não há franceses, com exceção dos professores. Há muitos africanos que não se entendem entre si, há árabes, há orientais. É uma verdadeira exposição de intolerância coletiva. E o filme escancara, também, a intolerância dos professores com os alunos. Não só a intolerância com sua origem, mas com uma geração que eles não conseguem entender, já que não enxergam que, num mundo como o de hoje, um professor não tem só o que ensinar, mas também muito o que aprender com seus alunos.
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O filme mostra uma realidade que é a mesma em qualquer país. Alunos desajustados e professores despreparados. Isso é assim na escola pública na França, nos Estados Unidos ou no Brasil. E como é uma realidade, o final não é cor de rosa. O final é cinzento, como o mundo.

domingo, 5 de abril de 2009

Perspectiva histórica

Existem coisas que conseguimos enxergar melhor se olharmos de longe. O futebol é um exemplo clássico. É só quando assistimos um jogo no estádio, do alto da arquibancada, que conseguimos visualizar todo o posicionamento dos jogadores, o que nos ajuda a entender a tática utilizada pelos dois times, além de perceber a carga emocional que a torcida exerce sobre eles.

Com a história acontece o mesmo. Quanto maior a distância, quanto mais tempo estamos de um fato, mais facilmente podemos analisá-lo e entendê-lo. Essa perspectiva nos permite olhá-lo sem paixões e sem qualquer contaminação, emotiva ou ideológica. Não quero dizer, com isso, que emoção e ideologia não sejam importantes. São, é fato, mas não para uma avaliação histórica isenta e fria. Por isso, é sempre mais fácil tentar entender a revolução Francesa do que a Segunda Guerra Mundial. Mais fácil enxergar o declínio do Império Romano do que a derrocada da União Soviética. Desta forma, é mais difícil avaliar, do ponto de vista histórico, o conflito árabe-judeu ou a ditadura militar brasileira.

Apesar de nunca ter tido dúvidas em relação a qual lado me posicionar, no caso do regime nazi-fascista alemão, por exemplo, sempre tive dificuldade em entender como é que um povo tão educado, culto e até mesmo um tanto erudito, pôde conviver tão tranqüilamente com as atrocidades que seu governo fazia com algumas minorias, como os judeus, os homossexuais e os comunistas. E, mesmo no caso da França, nesta mesma época, é surpreendente perceber que, depois de algum tempo de controle alemão, após ter seu país libertado pelos aliados, parecia que toda sua população era contra a ocupação germânica e todo mundo participava da resistência. Difícil engolir.

Pensando no nosso regime militar (parece que chamá-lo de ditadura está saindo de moda, mas o que é, é), sempre tive algumas questões a me intrigar. Sempre me custou, ou melhor, ainda custa, entender como é que uma categoria que, apesar de historicamente conservadora, mas, também, fundamentalmente disciplinada e legalista, como as forças armadas, puderam conviver com tanta facilidade com atitudes vis, como a tortura.

É exatamente essa questão que o livro A lei da selva, do jornalista e historiador Hugo Studart, procura abordar. O autor recebeu vários ataques da esquerda, já que pautou seu trabalho a partir de depoimentos de membros da comunidade militar que participaram do desbaratamento da guerrilha do Araguaia. Essa é, entretanto, a primeira coisa que ele deixa bem claro no início do livro. Sua intenção é compreender o imaginário dos membros das forças armadas e tentar entender como é que eles foram capazes de cometer crimes como a execução sumária de inimigos que estavam já dominados, esconder corpos em sepulturas clandestinas, degolar pessoas como se fossem bárbaros.

Já vou adiantando que ele não consegue atingir seu objetivo. Após entrevistar vários militares, ter acesso a vários documentos, dos dois lados do conflito, acaba por não construir conclusão nenhuma e, mesmo assim, o livro tem algum mérito. É que, não chegando a nenhuma conclusão final, ele deixa, a cargo do leitor, que faça sua própria construção.

Eu era um adolescente quando a guerrilha do Araguaia terminou e só depois de um bom tempo é que fui ouvir falar nela. Essa já foi uma coisa intrigante, pois, naquela época, também corria solta a guerrilha urbana e o governo utilizava de todas as suas armas de comunicação para posicionar a sociedade ao lado do regime. Em relação à guerrilha rural, na região do rio Araguaia, o silêncio era total. Isso foi, sem dúvida nenhuma, fundamental para que se pudesse executar a ordem superior que definiu que ninguém deveria sair vivo daquele conflito. Assim, a grande maioria dos participantes foi sumariamente executada, mesmo aqueles que já estavam capturados, sob a tutela do estado. Do lado do governo, esta é a principal questão intrigante que fica para analisar. Como é que os membros das forças armadas, forjados no pensamento positivista, doutrinados no cumprimento da hierarquia e fundamentados numa postura legalista, puderam perpetrar tais ações?

Do lado da guerrilha, também, restam questões intrigantes. Por que foi que a direção do PC do B, mesmo depois de ter a certeza de que aquela guerra estava perdida, de que seria impossível, militarmente, vencer o contingente que o regime autoritário enviara à região, por que é que, mesmo assim, a direção do partido não retirou seus militantes da área? Afinal, houve um momento em que o fracasso da empreitada estava absolutamente claro, e ainda era possível retirar os guerrilheiros da zona de combate. Mas a direção do partido preferiu insistir na peleja, alimentando a militância com a ilusão da vitória, e incentivando, junto à população local, a mitologia, como a de que Oswaldão tinha o corpo fechado ou que Dina virava borboleta.

Há, no livro, uma constatação surpreendente: entrevistados, os militares participantes do combate mostraram-se bastante reverentes com as figuras dos guerrilheiros. Muitos deles ressaltaram a coragem e a valentia de pessoas como Helenira, Dina e Oswaldão, e até de Maurício Gabrois que, apesar de não ter tomado a atitude de retirar os militantes da área, continuou ao lado deles, até a morte. É outra, entretanto, a imagem que eles têm de João Amazonas, considerado, pelos militares, como um desertor, um covarde. É emblemático, entretanto, que esses mesmos militares encontrem argumentos, os mais variados, para justificar seus crimes e não enxergar na sua atitude a mais rasteira covardia.
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De qualquer maneira, apesar de inconclusivo, o livro abre feridas várias, que só a perspectiva histórica será capaz de ver cicatrizadas. É um livro honesto, por não se posicionar ideologicamente. É, aliás, um livro que só se pode ler se se estiver desprovido de ideologia. Como se isso fosse fácil. Não é. Pelo menos, não ainda.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Che

O que há de mais importante no legado de Che Guevara, em minha opinião, são seus escritos. É em seus textos, frases, cartas e discursos que se encontra material suficiente para entender uma época e o imaginário de uma geração que acreditou, sinceramente, na possibilidade de mudar o mundo através da ação revolucionária.
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Independentemente de concordância ou não com sua ideologia, é impossível não identificar, na leitura de seus textos, pinceladas de lirismo e até mesmo alguma erudição, coisas raras de se encontrar em assunto tão áspero.

Pois foi justamente isto, ou seja, o conteúdo do pensamento de Ernesto Guevara, que faltou no filme Che, de Steven Soderbergh. As cenas são recheadas de referências históricas, absolutamente conhecidas de todo planeta, como as batalhas na tomada de Sierra Maestra ou seu famoso discurso na reunião da Organização das Nações Unidas, em 1964, época em que já havia iniciado o bloqueio comercial a Cuba, praticado pelos Estados Unidos e imposto, também por eles, ao resto do mundo ocidental. Bloqueio este que ainda perdura, há mais de 40 anos, apesar das promessas de Obama.

O filme, ao abdicar do pensamento de Guevara, faz uma opção pelo seu símbolo, numa recorrência do que acabou acontecendo na vida real, quando, por parte das esquerdas do mundo inteiro, seu pensamento foi colocado em segundo plano em prol da utilização de seu mito e sua imagem para incentivo da militância. Mais tarde, a mídia apoderou-se desse símbolo e sua imagem passou a fazer parte do universo pop, promovendo a festa dos fabricantes de camisetas, num primeiro momento, e das quinquilharias e bugigangas, logo em seguida.

O que é muito interessante, no filme, é justamente a semelhança física dos atores com seus personagens. Além da óbvia barba de Camilo Cienfuegos, a caracterização do ator Demián Bichir, como Fidel Castro, estava fidelíssima, com o perdão do trocadilho. Não só fisicamente, mas sua maneira de falar e sua verve, ao discursar, fazem lembrar, com precisão milimétrica, o decano comandante. Até mesmo Rodrigo Santoro, numa discretíssima participação, usa um bigodinho que Raul Castro ostenta até hoje. E o ponto alto da fita, sem sombra de dúvida, é o trabalho do ator Benicio Del Toro, no papel protagonista. Este ator começa a ocupar um lugar que é reservado a poucos, o de um ator excepcional.

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Não chega a ser ruim o filme. As cenas são bem feitas e as interpretações são convincentes. Perdeu-se, entretanto, uma ótima oportunidade de resgatar o pensamento do Che e preferiu-se o caminho mais fácil, ou seja, investir no mito e no símbolo. Isso empobrece o que poderia ser um grande filme, mas, provavelmente, irá render mais dinheiro para os produtores, como já rendeu aos fabricantes de camiseta.