Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

sábado, 24 de novembro de 2018

Som, imagem e poesia

O Grande Circo Místico é um poema de Jorge de Lima, alagoano parnasianista/modernista, constante do livro A Túnica Inconsútil, lançado em 1938. Seu texto é quase prosa, no qual se pode encontrar, entretanto, a mais pura poesia, basta saber como.

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps -
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
Jorge de Lima (de A Túnica Inconsútil)

Baseado neste poema, Chico Buarque e Edu Lobo criaram, em 1983, algumas das mais inspiradas canções do nosso cancioneiro popular para um espetáculo do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, com roteiro de Naum Alves de Souza. O disco com a trilha sonora foi um retumbante sucesso. Suas canções o são até hoje.

Na semana passada, estreou nos cinemas, o filme de Cacá Diegues, baseado no mesmo texto e utilizando as canções do espetáculo de Balé.

É pura poesia cinematográfica.

Um filme para se ver na tela grande e não para esperar um lançamento na TV. Afinal, som e imagem reunidos com tamanha beleza merecem o ambiente mágico que só uma boa sala de cinema pode oferecer.





terça-feira, 13 de novembro de 2018

A arte e os intelectuais nos regimes autoritários

Uma das características de períodos com governos autoritários é a negação da cultura. Nestes ambientes, é comum haver um clima de agressão exagerada a qualquer expressão de arte ou manifestação intelectual. Nos regimes autoritários (de esquerda ou de direita), as pessoas são levadas a acreditar que a arte e o pensamento crítico, assim como o conhecimento da história e da filosofia são males em si e que artistas e intelectuais são malfeitores.

Nos regimes totalitários de direita, estas pessoas são classificadas como comunistas (mesmo tantos anos após a queda do muro de Berlim este tipo de argumento ainda seduz hordas de histéricos). Nos regimes totalitários de esquerda a arte e o pensamento intelectual são formatados para servir à burocracia do estado. Neste aspecto, os regimes totalitários, em todo o espectro, se igualam (na verdade, se igualam em muitas outras situações). Todos suprimem e perseguem os artistas e intelectuais.

Arte e pensamento só florescem em ambiente de liberdade ou na luta para conquistá-la.

Eu não sou artista e, muito menos, intelectual, mas encaro a arte e o pensamento como os dois mais importantes ingredientes para meu enriquecimento pessoal (não estou falando de dinheiro, é claro). É através da leitura e da compreensão das mais variadas manifestações artísticas que eu tento me realizar como ser humano e extrair prazer da vida. Eu estranho quem, tendo acesso a isso, consiga viver sem. Se as pessoas procurassem experimentar o prazer que isso proporciona veriam quanto bem isso faz.

Entendo que a maioria das pessoas, sobretudo no Brasil, não tenham este acesso. Comer, beber, ter onde morar e outras coisas comezinhas são preocupações mais urgentes. É justamente por isso que eu defendo um modelo de estado mais justo, com menos desigualdade, com mais solidariedade e menos violência. Um mundo em que estas questões corriqueiras não fossem tão urgentes possibilitaria, para mais pessoas, a oportunidade de experimentarem a satisfação que o saber e o conhecimento proporcionam.

O modelo brasileiro alija uma porção esmagadora da população da possibilidade de encontrar este conhecimento e este prazer. Empurra esta parcela da nação ao consumo de entretenimento e tenta convencer a todos que estão consumindo arte. Não tenho nada contra o entretenimento, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como não cansava de repetir o Tim Maia.

Esta situação, entretanto, não é gratuita. Sempre foi interessante, para quem detém o poder, impedir o acesso ao conhecimento que produza reflexão. Foi assim em toda nossa história republicana, foi assim no nosso período imperial. E, não por acaso, sempre que há algum risco de que o pensamento crítico possa prosperar na sociedade, a reação recrudesce e conduz o país a um ambiente irrespirável. E nesse ambiente rarefeito, a incultura passa a ser virtude.

É por isso que se defende um modelo de educação sem cultura e sem pensamento crítico. Confundem educação com treinamento. E isso é muito útil para conservar as coisas como sempre foram. 



domingo, 11 de novembro de 2018

Pensando a solidão

O mais novo livro de Leandro Karnal é um ensaio a respeito da solidão. Dividido em 6 capítulos, ele inicia com uma visão bíblica da origem do homem, ser solitário (e feliz), num paraíso incontestável, até a criação de um novo ser, a partir de sua costela. É só a partir daí que Adão percebe que vivia sozinho, situação absolutamente natural, para ele, até então. Desta forma, passa a ter ideia do que era viver assim, com suas vantagens e desvantagens. O autor identifica, nesse ato do criador, uma censura à solidão, que percebe, também, em documentos de outros credos, como a Torá.

Como em um filme, numa troca de planos rápida, avança até o século XIX, para tratar da figura de Charles Darwin, pai da teoria da evolução, posição diametralmente oposta à mística criacionista. Aos 29 anos, Darwin caminhava para o presumível último quarto de sua vida, já que àquela época, o tempo de vida médio do ser humano não ultrapassava os 40 anos (ele, na verdade, viveu bem mais do que isso). Não era, portanto, o momento de decidir se deveria, ou não, se casar. Contrariando, porém, o costume da época e, refletindo entre prós e contras, ele toma a decisão de casar-se.

Num dos extremos da dicotomia entre fé e ciência, o cientista conclui, assim como o criador do universo, que não é bom que o homem esteja só (que é, aliás, o título do primeiro capítulo). A partir daí, Karnal parte para uma investigação a respeito da validade (ou não) desta afirmação. Para fazer isso, busca, de forma consistente, entender, exatamente, o que seja a solidão. Avança, mais uma vez, no tempo e chega aos dias atuais ao utilizar, para alcançar este entendimento, duas realidades bastante conhecidas de todos nós: o casamento e as relações pessoais nas redes sociais. O segundo capítulo, aliás, em minha opinião o melhor de todos, trata, justamente, deste mundo virtual e intitula-se A solidão entre milhões.

Partindo da observação do cotidiano, conclui que nunca estivemos tão conectados a tanta gente e, ao mesmo tempo, com tão pouca interação real. E, neste caso, interação real não se refere, apenas, aos relacionamentos ao vivo, em carne e osso, com outras pessoas, mas, sobretudo, ao formato que este meio propicia. O principal fator que falseia a realidade na forma de interagir através da rede é a possibilidade de sermos os “donos” da relação.

Adicionamos, curtimos e seguimos somente quem pensa como nós. Em referência àqueles cujas opiniões não coincidem com as nossas temos várias opções: desde ignorar até apagar o contato. Com isso, em lugar de interagir com outras pessoas, estamos, na verdade, interagindo com nós mesmos e, assim, ao invés de evoluirmos, internamente, através da exposição à diversidade de ideias, apenas reforçamos nossos próprios valores e convicções, ao mesmo tempo que sedimentamos nossos defeitos e preconceitos.

Ao analisar o casamento, ele conceitua o que chama de solidão a dois, que é aquela situação pela qual alguns casais passam quando a chama da paixão se esvai. Se a relação se sustentava apenas devido a este fogo, se não havia nenhum outro ingrediente, como admiração, por exemplo, a convivência passa a ser tão ou mais solitária do que a que ocorria antes de encontrar a pessoa amada.

Na busca do entendimento do que seja a condição de estar sozinho, chega a duas definições, parecidas, porém opostas: a de solidão e de solitude.

Em minha opinião, a melhor e mais fácil definição que diferencia estas duas palavras vem do teólogo alemão Paul Tillich:

Solidão expressa a dor por estar sozinho.

Solitude expressa o prazer de estar sozinho.

A partir deste ponto, o autor passa a enumerar exemplos de situações consideradas positivas em estar sozinho. Aborda a falsa solidão que é aquela em que a gente se encontra quando está absorto durante a leitura de um livro. Não há nada de solidão nesta atividade. É justamente nesses momentos que estamos travando um colóquio poderoso com o autor do livro e com o “eu mesmo”, o eu verdadeiro, o outro eu, que, muitas vezes, não conhecemos ou do qual nos escondemos.

Ele recorre, novamente, aos exemplos religiosos para mostrar que os momentos mais importantes das existências de Jesus Cristo, de Moisés e de Maomé, ocorreram quando eles estavam sozinhos no deserto, num monte isolado ou numa caverna.

No quinto capítulo do livro ele elenca inúmeros casos de solidão (e de solitude) presentes nas artes e, sobretudo, no cinema. Aqui, devo ser honesto, não cheguei a ler todo o capítulo, já que me pareceu, mais do que um ensaio produtivo, uma ostentação gratuita de conhecimento cultural. Desta maneira, pulei o capítulo quase no final e fui para o último (o segundo que mais gostei).

Este sexto capítulo, intitulado As solitárias, trata da utilização da solidão como forma de punição nas instituições carcerárias. Demonstra, através de estudos científicos e de depoimentos de vítimas, que a imposição compulsória da solidão pode ser até mais nociva ao ser humano que a tortura física. Aliás, a prática da solitária, como penalidade nas penitenciárias, já foi abolida em quase todo o mundo civilizado. Os Estados Unidos e o Brasil são dois exemplos, porém, de países em que ela é utilizada em larga escala.

O título do livro, O dilema do porco espinho – como encarar a solidão, é uma referência à metáfora, criada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer, para ilustrar o problema da convivência humana. Publicada como uma parábola em sua obra Parerga e Paralipomena, em 1851, acabou ficando famosa, apesar de ser considerada um texto menor do filósofo. Num ambiente de frio extremo, os animais costumam juntar seus corpos, uns aos outros, para se aquecer e, com isso, ficar numa situação mais confortável. Este conforto, obviamente, não se aplica aos porcos espinhos. Daí o dilema.

Na conclusão do livro, estar sozinho não é, necessariamente, uma coisa boa ou ruim. Pode ser qualquer uma delas ou ambas, dependendo da situação. Solidão ou solitude, a elas todos nós estamos sujeitos. Basta saber como encará-las.