Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 26 de outubro de 2014

A felicidade alheia

Há muito tempo que o cinema espanhol me encanta. Sem contar Luis Buñuel, o encantamento começou com as obras de Pedro Almodóvar e Bigas Luna. Filmes como Ata-me, Mulheres à beira de um ataque de nervos e As idades de Lulu, ainda nos longínquos anos 90, me seduziram definitivamente. Devo confessar que a sedução foi suportada pela beleza e pelo carisma de atrizes como Victoria Abril, Carmen Maura, Rossi de Palma e Maria Barranco. Depois, com Belle Époque de Fernando Trueba, conheci, numa só tacada, Penélope Cruz, Maribel Verdú e Ariadna Gil. Mais tarde, conheci Paz Vega. Aí foi covardia. Fiquei completamente dominado.  

Aos poucos, fui conhecendo diretores como Alejandro Amenábar, Emilio Martínez Lázaro, Julio Medem, Vicente Aranda e Fernando León de Aranoa e descobrindo filmes como Abre los ojos, Mar adentro, Los peores años de nuestra vida, El otro lado de la cama, Lucía y el sexo, La pasión turca, Los lunes al sol, entre muitos outros, sempre com interesse renovado.

Eis que, nesta semana, descobri, gravado da TV a cabo, o filme Enquanto você dorme (Mientras duermes), do diretor Jaume Balagueró, com Luis Tosar e Marta Etura. (veja o trailer do filme)


Trata-se de um triler envolvente que prende a atenção do espectador desde o primeiro instante e não lhe dá trégua até o final da trama. Luis Tosar eu já conhecia de outro filme, Segunda-feira ao sol, em que atuou ao lado de Javier Barden. Marta Etura, apesar da filmografia relativamente extensa, eu não conhecia, mas foi uma grata surpresa. Uma delícia de moça.

Apesar de ficar claro, logo no início do filme, a motivação do protagonista, mesmo após o término da trama, ficamos sem entender como alguém pode ter aquele mote na vida. E esta dificuldade de entendimento não é culpa do filme. É culpa da complexidade da espécie humana.

Cesar é o funcionário de um prédio em Barcelona (poderia ser Madrid, São Paulo ou Campinas) que tem como objetivo destruir a possibilidade das pessoas à sua volta serem felizes. Ele nunca foi feliz, mas não age desta maneira por inveja. Se fosse isso, seria mais fácil entender, por mais comum. Na verdade, ele nunca foi feliz porque nunca buscou isso, não tem este desejo. A sua infelicidade não o incomoda. O que o incomoda é a felicidade dos outros. Desta forma, ele não age na tentativa de ser como as outras pessoas, mas, sim, no sentido de que elas sejam como ele é.

Só o ser humano, entre todas as espécies, é capaz de agir assim. Isso não deveria surpreender, já que é o único, entre as espécies, capaz de se vingar ou de escravizar alguém. Não deveria surpreender, mas surpreende, como sempre ocorre, na maior parte das vezes, negativamente.

Um dado interessante é o fato do diretor ser catalão, o ator protagonista ser galego e a atriz ter nascido no País Basco, o que mostra que, apesar das diferenças de identidade cultural, os espanhóis, unidos, conseguem produzir coisas de muita qualidade.


sábado, 18 de outubro de 2014

A sociedade dividida

As últimas pesquisas do Ibobe e Datafolha mostram as intenções de votos válidos absolutamente empatados. Mais uma vez, parece que a sociedade está dividida. Como já falei aqui e também na página do Facebook, identifico gente respeitável entre os eleitores de ambos os partidos. Encontro também, infelizmente, muita gente intolerante dos dois lados, a maioria, aliás. E, até nisso, parece que se mantém a divisão.

Respeito a diversidade de opiniões, mas não respeito a intolerância. Pode ser uma falha de caráter de minha parte, mas não consigo conviver bem com pessoas que expressam posições racistas, homofóbicas e autoritárias. Posso até entender, no calor da disputa eleitoral, que surjam, nas redes sociais, ataques a candidatos adversários, por parte dos entusiastas de um ou de outro lado do espectro político. Acho uma pena que estas manifestações, em sua maior parte, não estejam embasadas em uma reflexão mais profunda, fruto de discussões honestas. Mas, até isso, essa forma de tratar eleição como se fosse jogo de futebol, eu consigo compreender.

O que tem me incomodado, desta vez, é que as pessoas, além de expressarem sua crítica aos candidatos (e aos políticos, em geral), estão dirigindo ofensas aos eleitores do lado adversário. Quem tem a minha idade e demorou a poder votar para presidente sabe o quanto é importante respeitar a decisão dos eleitores. Sou favorável a discutir, a argumentar, a discordar. Ofender jamais. Tampouco menosprezar quem tenha ideias divergentes.

A única coisa que não está dividida é a atuação da mídia. Não sou daqueles que têm ilusões a respeito de uma imprensa isenta. Isso não existe, nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo. O que seria desejável, na verdade, é que cada órgão de imprensa deixasse bem claro qual é seu posicionamento. Isto é absolutamente legítimo e todos os jornais e revistas têm seu espaço editorial para expressar suas preferências partidárias. Na hora de noticiar, porém, o que o bom jornalismo prega é que se adote uma posição honesta. Notícia é fato e não deve ser manipulada, independentemente de ser a favor ou contra a orientação política do jornal. Quando um órgão de comunicação tenta esconder sua orientação e publica os fatos de forma tendenciosa, aí, devemos desconfiar. Quais são os interesses que estão por trás desta estratégia?

Dois exemplos de posicionamento claro são a Revista Carta Capital e o portal de notícias GGN, do jornalista Luis Nassif. Em ambos os casos, está declarada a definição por uma candidatura e isso não impede que críticas sejam feitas às ações e atos praticados pelos partidos e políticos que eles apoiam. Isso é transparência. Isso é responsabilidade. Pode-se muito bem posicionar-se a favor de um programa ou um projeto político e noticiar os fatos de maneira honesta e não tendenciosa.

Infelizmente, porém, esta prática não é seguida pela maioria dos órgãos de comunicação. A Folha de São Paulo, a Revista Veja e a Rede Globo de televisão são, provavelmente, os exemplos mais claros desta falta de transparência e honestidade com a notícia, em cada um dos diferentes meios de comunicação de massa. Nestes órgãos, os profissionais de jornalismo são tutelados com rédea curta e a liberdade de expressão é controlada de maneira seletiva, conforme a orientação da empresa. Infelizmente, poucos jornalistas se rebelam, conscientes de que teriam fechadas as portas do mercado de trabalho, se o fizessem (Xico Sá foi uma estrondosa exceção).

Esta atitude da mídia é favorecida pelo comportamento da maioria de nossa sociedade que prefere se informar através da leitura apenas das manchetes dos jornais ou assistindo ao Jornal Nacional, enquanto devora o jantar à espera da novela. As pessoas recebem a notícia da mesma maneira que o fazem com a comida, ou seja, sem sentir o sabor e sem uma avaliação crítica. Preferem recebê-la já digerida em lugar de ler um texto embasado em argumentos que possibilitem uma conclusão que seja fruto de sua própria reflexão. Nada disso. A notícia que já vem acompanhada da conclusão é mais fácil, não dá trabalho. É como digerir uma comida óbvia, sem um toque especial de sabor. Afinal, o que interessa mesmo é a novela. 


sábado, 11 de outubro de 2014

Aniversário Nefasto

O aniversário dos 50 anos da deflagração do golpe civil-militar, ocorrido no Brasil em 1964, suscitou a publicação de dezenas de livros sobre o assunto. Outros foram relançados, aproveitando a ocasião. Alguns eu já tinha, outros eu comprei. Entre todos, o que mais me chamou a atenção foi 1964 dos historiadores Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes. Os motivos foram dois.

Em primeiro lugar, me surpreendeu o fato de que, diferentemente das demais publicações que trataram do período em que durou o regime militar, o livro de Jorge e Angela analisou o período imediatamente anterior ao golpe. Mais especificamente, do dia da renúncia de Jânio Quadros até o momento da eclosão da “redentora”.

A segunda característica que me instigou foi a condução da narrativa com um enfoque que procurou demonstrar, o tempo todo, que houve alternativas políticas que poderiam ter evitado o golpe, como já havia acontecido nas tentativas anteriores, desde o fim do governo de Getúlio, passando pela eleição de Juscelino e a posse de João Goulart. Se no primeiro caso o golpe foi debelado pelo suicídio do presidente, provavelmente a maior jogada política da nossa história republicana, as demais tentativas foram contornadas com muita habilidade por parte dos políticos da época.

Impossível não perceber as semelhanças entre aquela época e a atual, em que o Brasil se divide entre uma, aparentemente eterna, disputa entre esquerda e direita. Naquela época, como agora, havia importantes agentes de cada lado do espectro político e em cada um dos lados, diferentes graus de radicalismo.

Como acontece hoje, partindo do centro, tínhamos na esquerda uma ala moderada que podemos chamar de progressista, outra mais radical, que eu denominaria de sectária e na extrema esquerda, uma autointitulada ala revolucionária, mas com claras tendências golpistas.

Da mesma forma, e como ainda ocorre hoje, a ala moderada da direita pode ser classificada como conservadora, adjacente a uma ala reacionária e no extremo deste espectro político, nitidamente golpista.

As alas moderadas, à direita e à esquerda eram, àquela época, absolutamente conciliáveis. Os progressistas eram representados por uma robusta parcela do PTB enquanto os conservadores tinham sua base no PSD. Liderados, respectivamente, por San Tiago Dantas e Tancredo Neves, estas duas alas davam um suporte parlamentar relativamente confortável a Jango e às suas reformas de base. O livro mostra, aliás, através de documentos da época, que, diferentemente do que viria a se propagar, estas reformas eram bem aceitas por ampla parcela da sociedade representada, incluindo a imprensa, já àquela época, bastante conservadora.

Os militares, apesar de extremamente anticomunistas, eram, ao mesmo tempo, majoritariamente legalistas. Esta obediência à legalidade, aliás, foi o que ajudou a evitar, nas oportunidades anteriores, a deflagração do golpe.

O presidente, entretanto, sofria pressões dos que estavam distantes das posições moderadas e de ambos os lados. Da esquerda, o chumbo vinha de Leonel Brizola que representava a ala mais sectária do PTB e, também, do PCB de Luís Carlos Prestes, do governador de Pernambuco Miguel Arraes, da CGT, das ligas camponesas de Francisco Julião e também da UNE, comandada, pasmem vocês, por José Serra.

Da direita, o chumbo era mais grosso e vinha da TFP e da cúpula da igreja católica, mas estava concentrado na UDN de Carlos Lacerda, mais uma vez tentando capitanear a tomada do poder através de um golpe, como já tentara fazer em todas as oportunidades anteriores. Para isso contava com a colaboração dos governadores de São Paulo e de Minas, Ademar de Barros e Magalhães Pinto.

O que o livro mostra é que, caso Jango tivesse conseguido se manter atrelado aos moderados, ou seja, aos progressistas e aos conservadores, conciliados e equilibrando-se de forma relativamente estável, ele teria conseguido resistir às pressões, tanto da esquerda quanto da direita e teria conseguido implantar, ao menos em parte, suas reformas de base.

O que aconteceu, entretanto, foi que ele não resistiu e acabou cedendo às pressões da esquerda, desequilibrando a balança para aquele lado. Esta tomada de posição, aliada à decisão equivocada de apoiar os sargentos rebelados, provocou a adesão de diversos oficiais militares legalistas à onda golpista.

Havia, entretanto, a possibilidade de resistir, partindo de algum apoio militar proveniente do Rio Grande do Sul. A informação de que o movimento golpista já tinha garantido o apoio militar do governo dos Estados Unidos, o que provocaria uma guerra fratricida no Brasil, fez o presidente não adotar esta possibilidade.

Finalmente, o livro ajuda a derrubar alguns mitos que se perpetuaram depois do golpe, durante o regime militar:

O primeiro é o de que a imprensa e a sociedade não teriam apoiado o golpe. Através de imensa documentação da época, os autores demonstram que, desde dezembro de 1963, diversos setores da sociedade civil e, sobretudo a imprensa, em quase sua totalidade, apoiavam e até incentivavam o golpe.

O segundo mito é a respeito de Jango que, através da comunicação controlada pelo regime, passou à história como um político fraco e covarde. Nada mais falso. Jango era um negociador hábil e foi devido a isso que conseguiu resistir tanto tempo às investidas constantes dos inimigos. Acusam o presidente de covarde por não ter resistido, mas sua decisão foi tomada por generosidade a um povo do qual ele não queria ver o sangue derramado, no caso de um embate.

O livro nos ajuda a perceber que é através da política que se pode encontrar os caminhos que evitem as soluções radicais e, tivesse havido mais habilidade neste campo, o Brasil não teria passado por uma ditadura cruel e nefasta, que atrasou em mais de 20 anos o nosso desenvolvimento social.