Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Fita Branca

Que o ser humano é o animal com maior capacidade de cometer atrocidades contra elementos da mesma espécie eu não tenho a menor dúvida. É um bicho capaz de torturar, escravizar, vingar-se e, mais do que tudo, sentir prazer com isso. Por essa razão é que eu sempre encaro expressões como humanidade ou humanismo, com uma visão muito mais negativa do que a maioria das pessoas tem.

A história está recheada de acontecimentos que atestam a capacidade que temos de cometer atrocidades contra nossos semelhantes, muitas vezes revestidas de legalidade, como a escravidão, impingida aos africanos após a descoberta do novo continente, 500 anos atrás, ou os métodos utilizados pelo Império Romano para controlar as populações das terras conquistadas.

Quando a coisa é antiga, nos é mais fácil ter uma perspectiva histórica. Quando é coisa relativamente nova, envolvendo pessoas do mesmo tempo que o nosso, aí fica um gosto amargo na boca, uma constatação de que somos mesmo capazes de atos e atitudes vis.

Dentre os eventos mais recentes, um que sempre me intrigou foi o nazismo. Custa-me entender como um povo, relativamente culto e educado, como o alemão do meio do século passado, pôde deixar-se envolver e conduzir ou, mais do que isso, ser condutor de um regime que culminou com o holocausto. Tentando entender como isso possa ter acontecido, procuro, constantemente, compreender a gênese do povo alemão. Procuro observar o alemão de hoje, aproveitando as oportunidades que tenho, com boa freqüência, de viajar para aquele país, já há mais de 15 anos. Confesso que as muitas observações que faço, mais me confundem do que trazem conclusões. Na verdade, conhecer o alemão de hoje pouco ajuda a entender o que aconteceu mais de 50 anos atrás. Mais elucidativo seria, talvez, conhecer o alemão de antes das guerras.

Pois o filme A Fita Branca de Michael Haneke nos proporciona, exatamente, uma percepção de como era a população numa época anterior à primeira guerra mundial, retratando a vida numa pequena aldeia alemã. Estão lá presentes a rígida educação, baseada na disciplina, e o estímulo à delação, marcas incontestáveis do regime do Terceiro Reich. Mais forte do que tudo isso, há o olhar duro, sem doçura, das crianças. É inevitável perceber que serão aquelas crianças que, num futuro próximo, vão conduzir o regime nazista até onde ele chegou.

O filme é lento, quase parado. Filmado em preto e branco, bem escuro, sua fotografia ajuda muito a mostrar o ambiente dentro do qual se formatou o regime que construiu nossa história mais recente e forjou o mundo em que vivemos hoje.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Risco e prazer

Já falei aqui, há algum tempo, o quanto imagino ser difícil conviver com a obrigação de escrever crônica todo santo dia. E falei, também, como é perigoso comprar livros de crônicas de autores famosos, correndo o risco de perceber que os textos já haviam sido lidos nos jornais. Por isso mesmo, foi com muita atenção que comprei O Rei da Noite, de João Ubaldo Ribeiro. Tive o cuidado de ler, ainda na livraria, o início de vários textos, para ver se não os conhecia, já que tive, no passado, o hábito de ler sua coluna no Estadão. Como não leio o Estadão há muito tempo (sempre preferi a Folha, embora esta já não me satisfaça), este risco mostrou-se mínimo. Comprei o livro, portanto, com segurança. Foi uma sábia decisão, percebi depois.

Gosto muito mais do Ubaldo escritor de crônicas do que do escritor de romances. Na verdade, só li, dele, dois romances: A Casa dos Budas Ditosos, da coleção Plenos Pecados, tratando da luxúria, foi penoso de ler. Não foi por sentimento puritano, já que não tenho nada contra erotismo e nem mesmo a pornografia. Achei o livro ruim, só isso. O outro romance que li foi Sargento Getúlio, baseado no qual, achei o filme melhor. Pelo menos pela minha ótica, isso não é uma grande virtude para um livro. Provavelmente por causa destas duas experiências malsucedidas, O livro Viva o Povo Brasileiro repousa preguiçoso e virgem na minha estante há muitos anos.

As crônicas de Ubaldo, entretanto, sempre me agradaram muito, como me agrada vê-lo falar em entrevistas na televisão. Seus textos são rápidos e, principalmente, não são datados. Isso é muito raro. Nada pior que uma crônica que só tem vigor quando lida numa época específica.

Este livro, O Rei da Noite, teve o poder de me proporcionar bastante prazer. E é, fundamentalmente, o prazer que eu busco quando compro livros de crônicas, seja do Ubaldo, do Veríssimo ou do Cony. Compro, mesmo sabendo dos riscos que corro. Afinal, quanto maior o risco, mais prazerosa pode ser uma empreitada.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Maturidade

Foi quando atingi a maioridade que saiu este disco. Eu o comprei sem pestanejar, atestando assim, possivelmente, que atingira a maturidade. Pelo menos a musical, já que em outros aspectos talvez nunca a atinja. Assim espero.

Mas voltando ao disco, foi num tempo em que, depois de flertar com o rock americano e namorar com os Beatles, apaixonei-me, de vez, pela música brasileira, aquela que se convencionou chamar de MPB, até cair nos braços do samba, este sim, meu grande amor. Nesta alternância, um tanto volúvel, um tanto promíscula, de amores, acabei descobrindo o jazz e o que era pra ser uma aventura fortuita, virou um romance duradouro. Hoje, posso dizer que acaricio meus ouvidos com samba, MPB e jazz, não necessariamente nesta ordem, mas com clara predominância do primeiro.

O disco do Zimbo Trio reúne tudo isso. O grupo tem formação típica de trio de jazz americano, piano, baixo acústico e bateria. Sua música, entretanto é muito mais do que jazz, já que a maneira com que sempre lidou com ritmo e divisão nunca estará ao alcance dos músicos americanos.

Desde 1964 teve a mesma formação por pelo menos 35 anos. Em 2001, com a saída do baixista Luis Chaves, falecido em 2007, o piano de Amilton Godoy e a bateria de Rubens Barsotti agregaram outro componente. Confesso que nunca ouvi a formação nova. Talvez nunca venha a fazê-lo, já que tenho certa má vontade com mudanças de componentes de grupos musicais.

Acho que foi com a aquisição deste disco (pelo que sei, nunca foi lançado em CD) que virei gente grande, pelo menos em termos musicais.



Bebê (Hermeto Paschoal) com Zimbo Trio

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Teimosia

Tenho tremenda má vontade com a atriz Audrey Tatou. Na verdade, não gostei da maioria dos filmes que ela fez e naqueles que gostei, desgostei de seu desempenho. Cabe aqui uma exceção, o filme Bem me quer, mal me quer, que achei interessante. Especialmente, detestei O Fabuloso destino de Amelie Poulain, filme incompreensivelmente incensado por todos e que tornou a atriz conhecida fora da França.

Por isso, era de se esperar que eu odiasse o filme Coco antes de Chanel, sobretudo por tratar da vida de alguém que alcançou enorme notoriedade no mundo da moda, um dos assuntos pelos quais tenho mais desprezo na vida. De fato, dou um valor exageradamente pequeno a este tema.

Teimosamente, fui ver o filme mesmo assim. Surpreendentemente, gostei dele. Gostei do filme e do trabalho da atriz. Primeiramente, por não tratar quase nada de moda. E no que tratou, foi para mostrar o quanto revolucionária foi esta mulher. Nem todas as revoluções são feitas para libertar. A dela foi. Foi feita para libertar as mulheres dos espartilhos, dos penduricalhos, dos balangandãs exagerados. Sua revolução deu dignidade às mulheres.

O que mais me interessou no filme foi ver a vida sofrida na Europa do início do século XX, com sua elite desprezível e preconceituosa, sobretudo na França, a mesma coisa que já mostrou o filme Piaf – Um hino ao amor, do qual já falei por aqui. E se em Piaf a vida era sufocante, em Coco antes de Chanel, o que chama a atenção é a falta de esperança, falta de esperança no amor, sobretudo. A fase áurea de Coco Chanel, no filme, não é mostrada. Por sorte. Eu teria muito tédio em assistir a um filme que falasse de moda.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Exagero e abuso

Abraços partidos, o último filme de Pedro Almodóvar é puro exagero. Ele exagera no uso de clichês, exagera nas roupas, exagera nas cores. Exagera na maneira frenética com que os personagens encadeiam os diálogos para desencadear a trama. E usando o artifício do filme dentro do filme, chega ao delírio nos diálogos insanos.

Acontece que o exagero é a maior virtude de Almodóvar. Ninguém lida melhor com isso do que ele e, nesse filme, esse exagero acaba dando num resultado delicioso. Sou fã incondicional de Pedro Almodóvar, não tenho vergonha de confessar. Fazia tempo, porém, que não me divertia tanto com um filme seu. O último que me tocou foi Volver, do qual escrevi aqui, onde também falei que não haviam me encantado Má educação e Fale com ela. Abraços Partidos, porém, me agradou ainda mais. Não ao ponto de Ata-me ou Mulheres à beira de um ataque de nervos. Isso não deve acontecer mais, nem comigo, nem com ele.

O maior exagero do filme, esse sim, quase insuportável, é a beleza de Penélope Cruz. É mais que um exagero. Chega a ser um abuso.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Nuvens esparsas

Não me lembro se foi Gilberto Gil ou outro artista que, em seu depoimento no filme, fez um paralelo entre o samba e o baião, como os dois únicos ritmos genuinamente populares brasileiros. Nunca tinha pensado nisso, mas a coisa faz sentido. Foi no pós-guerra, quando uma enxurrada de ritmos estrangeiros invadiu nosso país e quando o samba mais autêntico enfrentava preconceituosa resistência de nossa elite, que, através de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o baião ganhou o país e depois o mundo. Luiz Gonzaga, o rei do Baião, ficou na mente de todos. É reverenciado, até hoje, por várias gerações de músicos importantes que reconhecem a influência que foi exercida por sua música. Mais do que isso, a marca de Luiz Gonzaga ficou fixada, de forma indelével, na vida do povo brasileiro. Tão importante quanto o velho Lua, para a disseminação deste ritmo, foi seu grande parceiro Humberto Teixeira. E como ocorreu com Guilherme de Brito e Vadico, que tiveram reconhecimento muito menor que seus parceiros Nelson Cavaquinho e Noel Rosa, respectivamente, Humberto Teixeira ficou relegado a um plano inferior, apesar da fundamental importância. O filme O Homem que engarrafava nuvens vem para reafirmá-la.

Desde o ano 2000, sua filha, a atriz Denise Dumont, que mora em Nova York, vem-se encarregando de resgatar suas memórias, promovendo shows e artigos em jornais e revistas sobre a importância de sua obra, nos ensina Ricardo Cravo Albin em seu Dicionário da Música Popular Brasileira.

Em 2002, idealizou o projeto que culminou com um show no teatro Rival, Rio de Janeiro, em que vários artistas importantes apresentaram clássicos compostos por ele. O show, gravado ao vivo, virou o CD O doutor do baião lançado pela gravadora Biscoito Fino. E agora, neste filme dirigido por Lirio Ferreira, é ela a responsável pela produção e quem conduz os depoimentos, dando, ela mesma, o seu próprio.

Muitas cenas do show são utilizadas no filme, mas as imagens mais instigantes são as do Rio de Janeiro da década de 50. São muitas cenas, muitas imagens, muitos depoimentos e muitos sons. Informações esparsas, como nuvens, que o diretor, com muita sensibilidade, conseguiu engarrafar em quase duas horas.

Resumindo, são quase duas horas do mais puro prazer. Prazer por ouvir boa música e por rever Denise Dumont, que tanto me encantou na adolescência, seja em filmes de qualidade duvidosa, seja nas páginas de revistas masculinas.







Respeita Januário (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) com Lenine

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Como nós

A principal virtude do filme Procurando Elly é desmanchar a imagem estereotipada que a mídia ocidental tenta nos passar do povo do oriente médio. Feito no Irã, o filme nos mostra pessoas absolutamente normais, com sonhos e excitações, algumas delas chulas (a maioria), como os que temos cá no ocidente. O único ponto que chama a atenção é o fato das mulheres ficarem cobertas dos pés à cabeça, o tempo todo, até mesmo quando entram no mar. Mesmo isso, entretanto, acaba nos parecendo absolutamente normal, após alguns minutos de exibição da fita, colaborando, positivamente, para o nosso exercício de tolerância com o que nos é diferente.

O filme tem um marco, exatamente na metade, quando um fato importante altera o comportamento dos personagens, até então, efusivo e alegre. A partir deste ponto, a trama passa a mostrar o quanto as pessoas tentam se esquivar de qualquer situação incômoda e começam a manejar a culpa como um instrumento de opressão. Se o comportamento da primeira metade do filme me incomoda, apesar de positivo, mas, justamente pela minha má vontade com estas situações de alegria imensa e exagerada, na segunda parte, regozijei com o filme, já que o comportamento negativo, absolutamente egoísta das pessoas, me pareceu muito mais próximo dos sentimentos sinceros do ser humano.

A alegria exagerada me incomoda. Me parece um artifício desonesto que as pessoas utilizam para convencer, a si próprias e aos outros, que na vida está tudo bem. Na vida nunca está tudo bem. A vida da gente é sempre feita de momentos de alegria e de tristeza, de consternação e de beleza, de fulgor e tédio. E são estas vicissitudes que a tornam rica e a nós, capazes de levá-la, para o lado que queremos. Quando nos enganamos e nos tornamos artificialmente alegres, deixamos de ser sujeitos para ser coadjuvantes.

Quando encaramos uma situação traumática, entretanto, e temos a possibilidade de enfrentá-la e matar nossos fantasmas, recorremos, freqüentemente, às ferramentas de autodefesa, dentre as quais, apontar o indicador pra frente é das mais utilizadas. E é isso o que passa a ocorrer na segunda metade do filme, em que cada personagem se apura em imputar culpas alheias, na tentativa de repassar o problema em lugar de tentar resolvê-lo. E nessa hora, mais uma vez, o filme mostra que os iranianos são exatamente iguais a nós.