Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 1 de setembro de 2019

Por que assistir a Maria Magdalena?

Há muitos exemplos, sobretudo na literatura e no cinema, de obras que contam relatos fictícios inseridos num ambiente histórico, promovendo a interação e até mesmo a convivência entre personagens da ficção com pessoas reais e, até mesmo, ilustres.

Ernest Hemingway, em seu livro Por quem os sinos dobram, conta uma história de amor, entre o professor americano Robert Jordan e a camponesa espanhola Maria, inserida no ambiente da Guerra Civil Espanhola. Jô Soares fez muito sucesso escrevendo histórias absolutamente fictícias ambientadas no Rio de Janeiro, em épocas distintas, com grande rigor histórico e geográfico. No cinema, em Casablanca, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman contam uma história de amor impossível nos papeis de Rick Blaine e Ilsa Lund, numa Marrocos controlada pelo Regime de Vichy, durante a Segunda Guerra.

Há uma categoria peculiar, entretanto, de obras (na literatura e no cinema) em que relatos ficcionais se desenvolvem em um ambiente histórico não convencional. Trata-se dos livros e filmes que se passam na região da Judeia, na época de Jesus Cristo. Usei o termo “não convencional”, pelo fato de que o próprio personagem de Cristo divide gigantescos contingentes de seres humanos em relação à crença na sua existência. A respeito da existência do personagem histórico Jesus de Nazaré, entretanto, cada vez mais, verifica-se uma tendência em aceitar suas evidências (embora, nos meios acadêmicos, haja uma forte resistência a isso, devido à sua fragilidade técnica).

Voltando às obras de arte, ou ao entretenimento, acabamos de acompanhar os 60 capítulos de uma série mexicana, recheada de atores colombianos, produzida pela Sony Pictures e exibida, no Brasil, pela Netflix, chamada Maria Magdalena. E aí, alguém pode perguntar: Por que uma série como esta pode interessar a um ateu convicto, como eu? Posso dar 4 motivos:
  • Embora não tenha fé em nenhum tipo de divindade e nem nutra, dentro de mim, qualquer espécie de crendice, reconheço o fato da humanidade, ao longo de sua evolução, ter se guiado por distintas formas de crenças, como as mitologias da idade antiga com religiões politeístas; as crenças monoteístas dominantes hoje em dia, sobretudo no ocidente; sem deixar de citar os credos originários da África negra e das Américas pré-colombianas. Respeito todo tipo de fé, reconheço alguma virtude em quase todas as religiões e desconfio de todas as igrejas. Quem me acompanha pelo Facebook ou neste esquecido blog, sabe de meu interesse pelo cristianismo e pela figura de Jesus de Nazaré e seu impacto na nossa história e filosofia (prova disso é a indicação deste livro que fiz há 13 anos). Por isso, não iria deixar de ver esta série.
  • O segundo motivo é a origem da série. Nós temos uma tendência de zombar dos programas e novelas produzidos na América que fala língua espanhola. É, aliás, comum que, nós, brasileiros, ridicularizemos as produções mexicanas ou colombianas, qualificando-as como de segunda categoria, mesmo que conheçamos produções europeias e norte-americanas tão ou mais caricatas. Por mais histriônica que possa ser a maneira dos atores e atrizes latinos interpretarem seus papeis, seria muito mais enriquecedor, para todos nós, se compreendêssemos que isso é, apenas, uma maneira diferente de atuar. Além do mais, na série, temos, ao menos dois bons atores colombianos: César Mora, que interpreta Herodes Antipas, e o ótimo Andrés Parra, que faz o papel de Simão (Pedro). Andrés Parra, aliás, foi quem interpretou de forma magistral o protagonista no seriado Pablo Escobar, El Patrón del mal, uma novela de longuíssimos 74 episódios, que vale a pena ser vista só por causa deste ator. E, se tudo isso não bastasse, o seriado exibe mulheres belíssimas, como María Fernanda Yepes, Jacqueline Arenal, Danielle Arciniegas, Susana Torres e Juana Arboleda.
  • O seriado tem um viés, fundamentalmente, feminista. Mostrando uma sociedade (tanto a romana quando a judia) em que as mulheres não tinham vez, voz nem espaço, a trama dá a diversas personagens femininas (Salomé, Abigail, Prócula etc.), oportunidade de expressar seu descontentamento com este estado de coisas. Sem contar a protagonista, dona de um discurso dominante e empoderado.
  • Por fim, como as evidências históricas são frágeis e cheias de lacunas e incertezas, quem escreveu o roteiro desta série, teve uma liberdade criativa que, em alguns momentos, beirou a literatura fantástica. Podemos dizer, utilizando uma linguagem mais moderna, que, em certos episódios, eles “viajaram na maionese” (com tudo de positivo que esse termo pode encerrar). A série tem pitadas de todo e qualquer ingrediente possível. Tem muito drama e violência (o volume de líquido simulando sangue deve ter arrebentado o orçamento da produção). Tem erotismo, suspense e humor. E tem, ainda, algumas coisas bem bizarras, como os trejeitos exageradamente afeminados de Caifás e seu sogro Anás, ou, então, a legenda em português que indica, além do que foi dito pelos personagens, todo tipo de ruído, como tilintar de moedas ou relinchar de cavalos!

Enfim, é um seriado que assistimos com prazer.





segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Maria Bonita


A primeira coisa que se percebe ao ler o livro Maria Bonita –sexo, violência e mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros, é a facilidade com que o leitor consegue se transportar para o ambiente do sertão nordestino. Esta, aliás, é a principal característica dos grandes relatos.

Livros sobre cangaceiros e, sobretudo sobre Lampião, há muitos. Alguns mais fantasiosos, em que se busca encontrar algo de romântico e aventureiro no cangaço, outros, tendenciosos, em que se tenta classificar cada bandido como uma espécie de Robin Hood sertanejo e, felizmente, há aqueles sustentados por criteriosa pesquisa historiográfica. Nesta última classificação é possível enquadrar Guerreiros do sol de Frederico Pernambucano de Mello, por exemplo.

O livro sobre Maria Bonita se enquadra, também, nesta categoria, mas o que ele traz de novidade é a visão da autora sobre a participação feminina no cangaço. Com isso, o principal mito que ela derruba é a crença que imperou, nos últimos 80 anos, de que as mulheres que entravam no cangaço o faziam por vontade própria, movidas por uma visão romântica (neste sentido, talvez o cinema nacional tenha prestado um grande desserviço à história).

Na narrativa, a autora mostra que a grande maioria das mulheres que “caíram” no cangaço foram raptadas e, sucessivamente, violentadas por homens extremamente cruéis, que as tratavam como se fossem seus donos. Relata a ética prevalecente no cangaço (e na sociedade da época, em todo o sertão) em que a mulher não tinha direito a voz ou a vontade. Não se furta, entretanto, a ressaltar que, em pouquíssimos casos, houve sim, mulheres que se uniram aos bandos de cangaceiros por vontade própria, sendo, inclusive, o caso de Maria Bonita.

Corajosamente, não há, na narrativa, uma tentativa de dourar a pílula quando se trata de relatar os casos de extrema violência, o que ajuda a deixar as coisas sem nenhuma sombra de dúvida. Mostra, além disso, que esta extrema violência não está restrita às atitudes dos cangaceiros, mas é aplicada, também, por agentes da polícia, em igual dose de crueldade daquela praticada pelos bandidos, contra velhos, mulheres e crianças.

E por falar em polícia, aliás, o livro escancara as relações promíscuas existentes entre os bandoleiros e as autoridades e os grandes fazendeiros.

Eu me interesso muito pela história do sertão nordestino da primeira metade do século passado, já que, na caótica profusão de diferentes nacionalidades que corre em minhas veias, há uma parcela de sangue pernambucano e sertanejo. Talvez por isso, eu tenha achado o livro tão delicioso.