Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 8 de julho de 2007

O problema maior

O maior problema não é enfrentar uma viagem a Carajás a bordo de um turbo-hélice, com uma escala na cidade de Araguaína, no estado de Tocantins, cuja pista do aeroporto faz o avião tremer mais do que a intensa turbulência tão freqüente na região.

O maior problema não é visitar a mina de Carajás, da Companhia Vale do Rio Doce, e sair de lá com terra até no orifício mais bem protegido do corpo.

O maior problema não é dormir no melhor hotel da cidade de Parauapebas e sentir saudades do chão duro dos acampamentos da adolescência.

O maior problema não é viajar de Parauapebas pra pegar um vôo em Marabá, passando pelas cidades de Curionópolis e Eldorado dos Carajás, num carro alugado, ouvindo no rádio Fábio Jr., KLB ou Fernando Mendes. Nem o fato da estrada não ter acostamento. Este não é o maior problema, mesmo que no final da viagem, quase chegando em Marabá, tenha que enfrentar uma imensa boiada ocupando a estrada inteira, vindo na direção contrária e não saber o que fazer. Mesmo porque, rapidamente (e na marra), você percebe que não precisa fazer nada, a não ser ficar bem quieto, andando pra frente, bem devagar, vendo a boiada passando a um palmo do seu nariz, te olhando com aquele olhar conformado que só os bois sabem olhar.

Não. Nada disso.

O problema maior é perceber que uma empresa tão lucrativa como a Companhia Vale do Rio Doce não consegue formar mão de obra qualificada e nem promover o desenvolvimento social de uma população que a ajuda a gerar tanta renda.

O problema maior é assistir à programação local, na televisão, e constatar que, no Pará, notícias sobre denúncias de trabalho escravo são notícias corriqueiras.

O problema maior é perceber, ao longo da viagem, a quantidade imensa de terra disponível, sem nenhuma utilização. Isso numa região em que a disputa por terras já produziu uma chacina vergonhosa, recentemente.

O problema maior é que exista uma cidade chamada Curionópolis em homenagem a Sebastião Curió, um dos mais sinistros e sanguinários personagens do regime militar.

O problema maior é passar, em Eldorado dos Carajás, pelo acampamento do MST e verificar o estado de extrema miséria em que vive aquela gente e se lembrar que, aqui no sul, tem gente que os classifica como um bando de vagabundos, desordeiros e desocupados.

O problema maior, o nosso grande problema, é essa desigualdade social ultrajante, essa distribuição de renda vergonhosa, essa miséria que já não sensibiliza ninguém. Como se não houvesse problema. Que não sensibiliza nem mesmo os miseráveis, que nos olham com o mesmo olhar conformado dos bois.

11 comentários:

Maria Helena disse...

Arnaldo,
Creio que o governo está tentando diminuir essa diferença social gritante. Em alguns estados a classe média cresceu, mas o maior problema é que a midia por interesses(sabe lá quais)distorce o foco,com intuito de desequilibrar
o governo, planta escândalos, maracutaias, até a exaustão.

ninguém disse...

Arnaldo. Você tem absoluta razão em sua perplexidade. Estamos vivendo, como nunca, o oito e o oienta. Iludidos com a propaganda oficial que diz que, no meio, tem alguma coisa. E também não acredito que, na ponta do mínimo, algo tenha mudado para valer - ou as ruas não estariam cada vez mais cheias de miseráveis. Se a cesta básica é ação, a meu ver, pífia, que deveria ser trocada pelo balaio de emprego, de oportunidade de trabalho e dignidade (e aí entra a Vale e a Petrobrás e tantas outras cabideiras) a questão agrária virou questão endêmica, a jamais ser solucionada para manter, com os políticos e "líderes" sedentos de poder, sempre, uma matilha de famintos raivosos por tantos anos de desprezo e, agora, de decepção com um governo que deveria estar se empenhando em resolver o problema mas lhes volta as costas.
Um abraço grande
maristela

Arnaldo Heredia Gomes disse...

Maria Helena,

Eu considero as ações sociais do governo, no mínimo, tímidas, para um governo que se supunha seria de esquerda, com toda a história que o PT carrega nas costas, de lutas por avanços sociais. Mas o meu texto aponta muito mais na direção da diferença de classes que se construiu no Brasil. E aí, foco muito mais no comportamento da classe dominante do que na ação do governo.

E concordo com você quanto à midia. Os interesses que a motivam são os mais escusos possíveis. Ao menos a grande midis.

Maristela,

Eu não colocaria a Petrobrás e a Vale no mesmo balaio de gatos. A preocupação da Petrobrás com a formação de seus quadros técnicos é infinitamente mais avançada do que a CVRD. Além do mais, não devemos nos esquecer que a Vale, desde foi privatizada em 1997, no governo FHC, a partir de quando, diminuiu muito os benefícios sociais de seus funcionários.

Mas concordo com você que esse governo é decepcionante, no que diz respeito às questões de avanços sociais, sobretudo na questão da reforma agrária.

Marcia disse...

seu texto é sensível e difícil de comentar. casualmente, eu e Sean falávamos sobre este abismo hoje, este abismo social que algumas pessoas simplesmente não querem ver (mas que, para tantas, é a concretude de seu cotidiano).

o que mais me incomoda é ver pessoas inteligentes e cultas analisando tudo de modo superficial, apenas com as informações que recebem da mídia, sem parar para pensar que interesses regem estas informações. esquecem de dar voz à própria sensibilidade. nunca param para de fato olhar um acampamento de sem-terra. não conhecem a vida destas pessoas. gostam apenas de criticar "o governo", esta entidade abstrata, pois isso retira delas mesmas um pouco da responsabilidade de parar, pensar e compreender o mundo.

concordo com tudo que vc diz em seu texto. e além disso, o estilo é puro talento.

Maria Helena disse...

Arnaldo,
O Lula é governo, não mais o sindicalista, então precisamos ter consciência de que não é só social os problemas do Brasil, neste caso corrigir erros e descasos de anos leva tempo e dinheiro, não só apenas em 6 anos.
Se não atropelarem o HOMEM, acredito que teremos um governo para a história.
Quantos as falcatruas, corrupções, o mal precisa ser cortado pela raiz, aquele "jeitinho"brasileiro precisa acabar. O congresso é o espelho do povo.
Desculpe o desabafo.
Bjs

Anônimo disse...

Concordo com a Maria Helena de que Lula tem feito um bom governo para os pobres de algumas regiões. E não com medidas assistencialistas, como insiste em dizer a grande mídia. Conheci diversos jovens de periferia que ingressaram na universidade com a ajuda do ProUne. Quando isso aconteceria na gestão do PSDB? O projeto Luz para Todos tem levado energia elétrica - e consequentemente emprego, mercado e informação - para os rincões mais afastados do nordeste. É uma realidade a ser considerada, mas a imprensa minimiza ou mesmo desqualifica tais iniciativas, classificando-as como paliativas, populistas ou - ironia das ironias - stalinista.

Quanto ao texto do Arnaldo, concordo em gênero, número e grau. Ainda bem que há pessoas que não perderam a capacidade de se indignar com a miséria...

Claudia Lyra disse...

Você tem toda a razão: nossa temporária falta de conforto por conta de uma viagem não é nada em comparação com o tipo de vida que, pra muitos brasileiros, é o único disponível. Sei lá... tem solução fácil não...

Vivien Morgato : disse...

Arnaldo, como sempre, um texto contundente e inteligente.
O que me deixa aflita é o final do seu texto, os problemas lancinantes tornados cotidianos, triviais, comuns.Porque tropeçar todo dia neles nos faz introjeta-los como comuns, não é?
Afinal, se não fosse assim, se ñós todos não estivessemos acostumados com isso, iríamos parar o carro no primeiro garotinho que nos pede dinheiro no trânsito. Iriamos ver se estava perdido, onde morava, porque garotinhos no trânsito não poderiam ser corriqueiros. E são.
Parte de nós fecha o vidro, parte de nós dá uns trocados. Mas todos nós estamos acostumados.
Triste pra todos.
beijos.

Diego Moreira disse...

O Pará é um estado que tem qualquer coisa que se possa imaginar.
Cultura Rica: Tem.
Gente Trabalhadora: Tem.
Riqueza Natural: Tem
Extrativismo vegetal/mineral: Tem.
Corredor de Exprotação: Tem.
Graves problemas sociais: Tem.
Latifúndios: Tem.
Conflitos por Terras: Tem
Trabalho escravo: Tem.

O Pará tem tudo o que se possa imaginar.

Quanto ao governo Lula, acho que ele peca em vários aspectos mas tem o mérito de agir em alguns pontos estruturais e por ter optado por um modelo de gestão com medidas benéficas de longo prazo. A política econômica é prova disso. Passamos quatro anos amargando juros altos e, agora eles estão caindo de fato. A classe média comprará carro zero em 84 meses. Se os juros cobrados pelas agências são altos, cabe ao governo agir mas também cabe à sociedade protestar contra esse execrável spread bancário.
Mas o fáto é que está ficando menos difícil a vida, mesmo com os choques externos.

Abraços!

Anônimo disse...

De fato, os problemas são tantos que fica impossível ver qualquer beleza aqui no meu Estado... Uma pena, Arnaldo... Seu texto é mesmo um retrato do que salta aos olhos por aqui.
Sou freqüentadora do teu blog há um tempinho via Pátriafc, gosto muito dos teus textos: bonitos, lúcidos, bem escritos... Como eu gostaria de vê-lo escrever algo melhor destas bandas de cá.
Abraço
Perla (de Marabá, no Pará)

Anônimo disse...

Também acho q curionópolis (assim minúsculo mesmo) é de fo...