Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Bicho homem

Uma esquina movimentada. Um cruzamento entre duas grandes avenidas, no centro de uma grande cidade. Bastante gente esperando o semáforo. Hora do almoço. Bancários, gente do comércio, gente fazendo compras, gente passeando, um velho, um rapaz jovem.

O semáforo prestes a abrir. De repente, uma gritaria. O rapaz puxa rapidamente das mãos do velho um bolo de dinheiro. Não dá pra ver se é muito ou pouco dinheiro. Não dá pra perceber se são notas graúdas ou dinheiro trocado. O rapaz é mais ágil e se livra do velho. Corre em direção à garupa de uma moto. Seu companheiro o espera.

Parecia tudo resolvido. Não se sabe de onde, porém, o velho arranja fôlego para correr e agarrar o jovem. Segura em sua camiseta. O rapaz tenta se livrar. É mais forte, é mais ágil, mas o velhote é grudento. Não consegue se desvencilhar. O companheiro espera, aflito. Solidário.

Enfim, o velho consegue arrancá-lo da moto. Os dois se engalfinham. O velho agarrado no rapaz. Grudado. Como cola. A moto arranca. Some.

Ambos na faixa de pedestre. O rapaz só quer saber de se livrar do velho e correr. Não importa mais o dinheiro. O velhote só quer seu dinheiro. Não importa o destino do rapaz. Um transeunte decide agir. Mais jovem do que o velho. Não tão jovem quanto o rapaz. Solidário.

Embolam-se os três no chão e aí junta mais um. O rapaz leva uns sopapos, imobilizado. O semáforo abre, mas os carros permanecem parados. Atentos. Solidários.

Não sei o final da cena. Mudamos de rumo. Não é uma boa política, um estrangeiro se meter numa briga destas. Daqui a pouco a polícia chega. Resolve o assunto. Mas fica a imagem na mente e a mente cria.

Pode ser que o rapaz esteja passando fome, que esteja com o filho pequeno doente, sem assistência, sem dinheiro pros remédios. E pode ser que o velhote seja um grande filho da puta, cheio do dinheiro, conseguido através de negociatas sujas e desonestas. Pode ser dono de um grande latifúndio onde escraviza crianças.

Mas pode ser que o velho seja um pobretão aposentado e tenha saído do banco com o único dinheiro que lhe cabe todo mês. Um dinheiro contado, que mal dá pra duas semanas sofridas. E pode ser que o rapaz seja um traficante de drogas, espancador de mulheres. Pode ser o líder de uma gangue de skinheads.

Pode ser que os dois sejam sacanas. Pode ser que os dois estejam fodidos. Não dá pra saber.

O que deu pra perceber é que o ser humano, quando precisa, é capaz de resgatar seus instintos, como todo bicho. Atacando e se protegendo. Tentando defender o seu lado. Cuidando de sua pele.

E também é capaz de ser solidário.


Em tempo: Esta cena se passou em Buenos Aires, mas poderia ter se passado em qualquer cidade grande, como o Rio de Janeiro, São Paulo ou Campinas.

6 comentários:

Anônimo disse...

Grande crônica, Arnaldo!

Vivien Morgato : disse...

Concordo com o Bruno, grande crônica.
Só não sei se o que pesa aí é a solidariedade ou o instinto agressivo, "pega, amta e come".
Eu já presenciei um linchamento, avaliando hoje, creio que foi algo maior - e mais assustador - do que o instindo solidário que moveu as pessoas envolvidas.

Anônimo disse...

Nossa, Arnaldo. Nunca parei pra pensar em tanta coisa.

Anônimo disse...

É...o bicho homem sempre surpreende...
Sentimentos à beira da explosão dentro de uma "máquina perfeita".
Um atitude que me impressionou uma vez foi quando meu pai e eu andávamos de bicicleta em um domingo...
Ao passar por mim, um ciclista me chingou por estar impedindo o caminho dele, quando eu tentava atravessar a avenida.
Meu pai literalmente virou fera urrando para o "boca-suja".Eu nunca o vi de tal modo...

Fiquei dividido entre me conter do medo que tive desse lado de meu pai e fazê-lo parar para evitar confusão...
Abraços

Anônimo disse...

Concordo que esta cena poderia ter se passado em qualquer cidade grande. Só que, se fosse aqui no Rio, os carros parados atropelariam os dois, assim que o sinal abrisse. Nada solidários...

Wanderley Garcia disse...

Por essas e outras, sou mais MST. Trabalhadores organizados em busca de um pedaço de terra pra ter onde plantar e o que comer.
Muito bom o seu texto!