Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

domingo, 19 de novembro de 2006

Família & Tradição

Quando o Ademar e o Paulinho chegavam em casa, em horário pouco provável, todos sabíamos o que tinha acontecido. Alguém da família havia morrido. E vinham buscar o meu pai, que, com eles, formava o triunvirato funéreo. Sua incumbência era fazer com que o enterro acontecesse de forma apropriada. Eram tarefas singelas, como colocar a roupa no defunto, arrecadar dinheiro pra comprar um caixão, descobrir se alguém na família tinha um lugar pra enterrar o dito cujo, estas coisas. Mas a tarefa mais importante do grupo era garantir que o bar mais próximo do velório ficasse aberto a noite toda.

Os enterros da minha família seguiam um roteiro padrão. Os homens ficavam no bar, contando piadas e enaltecendo as qualidades (nem sempre elogiáveis) do defunto. As mulheres ficavam velando o corpo, em conversas sussurradas, falando mal de alguém que não estivesse presente, ou estivesse mais longe, do lado de dentro do caixão, por exemplo. E o tititi corria solto, até que alguma desmancha-prazeres, mais desavisada, tivesse a infeliz idéia de puxar um terço. Aí, não tinha saída. O segredo era ser bem rápida com as palavras pra terminar logo as contas e retomar as conversas.

Os meninos ficavam com um grupo ou com o outro, dependendo da faixa etária. Lembro-me da minha felicidade, no enterro do meu avô, dia em que mudei de grupo, livrando-me das rezadeiras e passando a ouvir as piadas que eu não entendia a metade. Mudei do chá pro guaraná, outra vantagem.

Há histórias hilariantes sobre enterros, a maioria delas não presenciadas por mim, apenas ouvi contar, possibilitando muita mentira, portanto.

O enterro do tio Zé foi no cú do mundo. O cara morava num casebre, praticamente, e o bar mais próximo era a léguas de distância. O jeito foi trazer a bebida para o velório, solução radical e só utilizada em casos extremos. Aquele era um caso extremo. Apesar disso, o velório transcorreu sem nenhum imprevisto. Problema foi mesmo na hora de seguir pro cemitério. A porta do casebre era mais estreita do que a largura do caixão, que entrara na casa vazio e de lado. Agora, evidentemente, ele estava cheio e não havia como passar. Nem pela porta, nem pela janela. Ninguém teve dúvida. Quebrou-se a parede e o féretro seguiu incontinente pro seu destino. A parede quebrada ficou de herança pra viúva.

O que nunca falta em um velório é gente disposta a ter chiliques. E uma tia minha, useira nesse comportamento, era a viúva num dado velório. Previa-se um chilique especial e a previsão confirmou-se. À beira do caixão, os soluços viraram gritos e, num momento de êxtase, ela pediu pro defunto levá-la junto com ele. A coisa tendia a fugir do controle quando o tio André (sempre ele) aproximou-se da viúva e sussurrando, sem ninguém mais ouvir, informou-a que o dito cujo tinha morrido numa cama, ao lado da outra, num momento mais que sublime. Como por encanto, os gritos calaram. O enterro seguiu tranqüilamente, mas ninguém entendeu porque as lágrimas secaram no rosto da viúva.

Houve uma ocasião em que surgiu um problema, aparentemente, insolúvel. O enterro seria num cemitério bem longe, pra onde não havia ônibus. Ninguém na família tinha carro. O tio André, então, contratou vários carros de praça (antigo nome dos táxis) pra levar a família toda pro cemitério. E assim foi resolvida a questão do transporte. Aquele foi o único enterro ao qual o tio André não compareceu. E até hoje, ninguém me contou quem pagou os táxis.

No velório da minha mãe ninguém conseguiu garantir um bar aberto a noite toda. Certamente, contribuiu pra isso, o fato do meu pai não estar com a cabeça voltada pra este problema prático. Não notei nenhum movimento estranho e não percebi se havia ação para trazer bebida pro local. O corpo iria ser velado a noite toda e eu estava meio cabreiro porque tentei convencer o povo a ir pra casa, voltando no dia seguinte, pela manhã. Afinal, aquele caixão não iria sair dali. Ninguém me ouviu. Eu fui dormir e convenci meu pai e minha irmã a fazerem o mesmo. E, na rebeldia dos meus vinte anos, avisei que se alguém desse chilique seria botado pra fora do local. No comecinho da manhã, um tio, completamente bêbado, esboçou algo parecido com um fricote e recebeu o devido cartão vermelho. Este incidente, pelo menos, me fez perceber que não houve falta de bebida naquela noite. Fiquei mais tranqüilo. Afinal, pra que serve uma família se não consegue manter suas tradições?

8 comentários:

Anônimo disse...

Ah, essas histórias... Sempre que alguém marca um churrasco ou uma festa em família eu e a Ceci apostamos quais destas histórias alguém vai contar! Pelo menos agora já decoramos todas elas porque desde que nós nascemos não houve mais nenhum enterro memorável e, se houver, eu certamente não estarei presente. Mãs não se preocupe, nós continuaremos contando essas histórias e manteremos a tradição da família!

Arnaldo Heredia Gomes disse...

Pois é, Bá. Acho que não vai ter mais nenhum enterro divertido nessa família!!!

Anônimo disse...

Meu pai só se esqueceu de falar da Candinha, né Bá?? Ela deve estar se revirando no túmulo, se é que ela morreu... Ou existiu...

Anônimo disse...

Pois é...essas histórias sempre deixam lembranças interessantes, pois elas normalmente acontecem quando ainda somos crianças e não entendemos quase nada...tudo sob uma ótica "inocente"...
Depois crescemos e tudo assume um peso...inclusive a perda...

Anônimo disse...

Leio seu blog e me dá vontade de outros almoços daqueles. Vamos tentar armar uma paella, preparada pelo André (ex-dono do Gioconda e grande amigo). Da última que fizemos ficou bem barato por cabeça e todo mundo comeu de se esbaldar. Tradição também é coisa de amigo. Abração.

E viva Zumbi!

Arnaldo Heredia Gomes disse...

Grande Bruno,

Adorei essa idéia, pois adoro comer de me esbaldar e adoro paella.

Anônimo disse...

Legal Arnaldo,
Muito boas essas histórias de enterros. 3 meses atrás fui no da avó do meu cunhado. Fiquei só um pouco, e depois levei a sogra e a cunhada embora... tava servindo de motorista. Pela galera de tios, primos, agregados e resto de família (dele) que ia chegando, deve ter rolado uma noitada das que você descreveu num boteco perto do aeroporto de cumbica também. Pra aqueles lados tem um monte...vou checar com ele. Mudando de assunto: por falar em Paella, tô com saudades de uma também. Ficamos de programar uma em Santos nas coletivas no Olympia com o Lillão, sua prole e sobrinhos... os Lilinhas. Se confirmar eu te dou um toque. Ainda não conheço, mas o Lillão fez uma boa propaganda. Abraços. Alex

Vivien Morgato : disse...

Arnaldo, o texto está sublime.
Quanto aos enterros, há uns quinze anos, minha familia, muito grande, resolveu criar uma festa anual, ja que os velorios acabavam virando uma puta festa e o povo achou que estava desmoralizando tudo.....