Livros, música, cinema, política, comida boa. Isso tudo e mais um montão de tranqueiras dentro de um baú aberto.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Mineiridade

Tempos atrás, uma amiga chamou a atenção da Clélia para um livro editado em 1996 e que passou despercebido. Ele foi reeditado em 2002, dessa vez, com um CD incluído. Trata-se do livro Os Sonhos Não Envelhecem: Histórias do Clube Esquina, de Márcio Borges.

Um dos fundadores do movimento da música mineira, que surgiu nos anos 60 e invadiu os anos 70, Márcio Borges nos conta, com muita delicadeza, a história daquele grupo de jovens que criou uma forma diferente de fazer música, num período já muito fértil do ponto de vista da criatividade musical no Brasil. Teria sido muito fácil seguir um caminho aberto pela bossa nova ou aderir a algum novo movimento musical como o tropicalismo ou a jovem guarda. Mas os mineiros tinham uma coisa especial dentro de si. Uma coisa nova. Diferente.

O livro nos conta, sobretudo a história de Milton Nascimento, o Bituca. Ele foi o grande artífice deste movimento. Mostra como o processo de criação operava naquele ambiente e toda a genialidade deste artista. Fala da forma revolucionária que ele utilizava pra compor. Detalha aspectos importantes de sua personalidade sem se ocupar com fofocas ou questões pessoais que não sejam relevantes musicalmente. Foi Márcio Borges quem insistiu com Milton para que compusesse canções. Até então, ele só pensava em cantar. E foi, justamente com Márcio, que ele compôs sua primeira música: Clube da Esquina.

É muito prazeroso acompanhar as histórias da composição de algumas músicas muito conhecidas como Travessia, Paula e Bebeto e Vento de Maio. Além de Milton, pode-se acompanhar o início da carreira de músicos e compositores importantes como Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes e Lô Borges.

Tendo sido o primeiro parceiro de Bituca, Márcio Borges mostra bastante generosidade e humildade ao reconhecer o talento e até alguma superioridade em outros dois parceiros muito importantes de Milton Nascimento: Ronaldo Bastos e principalmente Fernando Brant. É possível, conforme se desenrola a história, perceber o quanto este letrista é genial. A cada passagem do livro envolvendo Fernando Brant, extrai-se uma obra prima. E além de um parceiro criativo, Ronaldo Bastos revela-se também muito importante na produção de discos e shows de Milton Nascimento.

O livro é delicioso. O autor consegue nos transportar para cada lugar e cada época, nos proporcionando intimidade. Desvenda a Belo Horizonte do regime militar e revela a família tipicamente mineira. Oferece, sobretudo, a sua família, abrindo as portas da casa dos Borges, pra que consigamos entender, mais facilmente, o ambiente em que aquela criatividade toda pôde ser extravasada.

Sei bem o que é isso. Tenho amigos mineiros e conheço a sua hospitalidade. Não há nada parecido. E mostrando os integrantes do clube da esquina migrando pra São Paulo ou Rio de Janeiro mas sempre voltando pra Minas, o livro confirma uma convicção minha: a de que o mineiro, entre todos os brasileiros, é o povo que mais sente saudades de sua terra. Mineiro é louco pra voltar.

Mesmo quando fala da barra pesada que foi a época violenta do regime militar, o livro não perde o lirismo. Toda a narrativa é composta com muita saudade. Não aquela saudade triste que reclama que o tempo bom não volta mais. Uma saudade alegre de quem sabe que os sonhos não envelhecem. Não envelhecem e nem acabam. Eventualmente são substituídos.

É um livro pra quem gosta de música, pra quem gosta de história, pra quem gosta de sonhar.


Um comentário:

Anônimo disse...

Minha amiga Kátia. Foi ela quem falou deste livro e a gente foi atrás...
Esta canção é mesmo linda! É sempre emocionante ouvir o Milton cantar!

Clube da Esquina
Milton Nascimento & Fernando Brant


Noite chegou outra vez,
De novo na esquina
Os homens estão
Todos se acham mortais
Dividem a noite, a lua, até solidão
Neste clube, a gente sozinha se vê
Pela última vez
À espera do dia, naquela calçada
Fugindo de outro lugar

Perto da noite estou
Meu rumo encontro nas pedras
Encontro de vez
Um grande país
Eu espero, espero do fundo da noite chegar
Mas agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la onde for
Venha até a esquina
Você não conhece o futuro
Que eu tenho nas mãos

Agora as portas vão todas se fechar
No claro do dia, o novo encontrarei
E no curral D'El Rey
Janelas se abrem ao negro do mundo lunar
Mas eu não me acho perdido
No fundo da noite partiu minha voz
Já é hora do corpo vencer a manhã
Outro dia já vem
E a vida se cansa na esquina
Fugindo, fugindo, pra outro lugar